A grande discussão que acirra os ânimos de juristas, de especialistas em tecnologia da informação e da sociedade digital, é a surpreendente tese que preconiza a possibilidade de legítima defesa das vítimas aos ataques criminosos de hackers, sob a égide dos institutos do Direito Penal.
A polêmica é grande e as correntes de pensamento são conflitantes, haja vista a crescente quantidade de lesados que ingressam nos Tribunais Brasileiros buscando a punição dos criminosos virtuais e a diligente busca para afastar a sensação de vulnerabilidade nos meios eletrônicos.
Assim, a fim de facilitar a compreensão, faremos uso de um exemplo clássico, no qual demonstraremos a aplicação das três teses mais discutidas dentre os posicionamentos defendidos pelos especialistas na área. Vamos ao exemplo: imaginemos que uma grande corporação teve seus sistemas eletrônicos invadidos ilicitamente, tendo seus dados sigilosos ?furtados? por um hacker; ao constatar-se vítima de referido crime, a corporação aciona o departamento de Tecnologia da Informação, que localiza o criminoso digital através dos rastros deixados e invade seus sistemas a fim de trazer de volta os dados que pertenciam à corporação.
Sob uma primeira análise leiga, a conduta acima descrita seria tão somente a prática da justiça, contudo sob o aspecto legal, se considerarmos a possibilidade de responsabilização, a questão não é tão simples assim, vejamos.
A primeira tese defendida por alguns juristas é a da legítima defesa, que encontra respaldo nos arts. 23 e 25 do Código Penal, ou seja, não há crime quando o ato é praticado em legítima defesa.
Ora, vale lembrar que não se trata de situação na qual estamos diante de um marginal com arma em punho, na iminência de atirar e, em reação imediata, esfaqueamos o agressor para preservarmos nossa própria vida. No caso em comento, estamos em âmbito digital e temos à nossa disposição todo o ordenamento jurídico que devidamente acionado pode impedir a utilização de tais dados, bem como responsabilizar o criminoso civil e penalmente.
Se assim fosse estaríamos justificando a prática de outro crime com base na legítima defesa, passando a vítima à condição de criminoso. Ademais, existe ainda o grave risco do excesso de conduta na reação de legítima defesa, excesso esse punível, o que geraria ainda maiores riscos para os envolvidos.
Nesse passo, trazemos à tona a outra tese jurídica que justificaria tal proceder: a inexigibilidade de conduta diversa, que consiste na possibilidade de permitir que a vítima, nas circunstâncias em que ocorreu o fato, tivesse comportamento diferente que o permitido pela norma, agindo em desacordo com a lei.
A fim de esclarecer tal instituto jurídico, podemos citar o caso real da absolvição do jovem que cometeu homicídio no trânsito causado por iminência de assalto. Ao dirigir em avenida conhecidamente perigosa, o motorista viu o veículo de trás, com quatro indivíduos mal encarados, aproximando-se rapidamente e emparelhando em seu carro, dando a entender que se tratava de assalto.
Ao tentar escapar, acelerou seu carro em manobra rápida que ocasionou a capotagem e culminou na morte dos passageiros. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul o absolveu com base na tese de inexigibilidade de conduta diversa, entendendo ser plenamente aceitável que em época de insegurança e violência gerarem muito medo, a conduta diversa é justificável para aceitar o acidente.
Entretanto essa esteira de raciocínio é fundamentada no conceito de causa supralegal de exclusão de culpabilidade, ou seja, não há previsão em lei, mas pode ser aceita com base nos entendimentos dos doutrinadores, porém é um dos temas mais tensos dentro da dogmática penal.
Desse modo, voltando para o exemplo em tela, a política da corporação suportaria tal risco? O gerenciamento de riscos jurídicos no âmbito corporativo é forte fator de competitividade no mercado, sendo a estratégia de revidar a invasão de seus sistemas geradora de grandes riscos legais.
Por fim, exporemos a tese jurídica que encontra respaldo no cerne do Direito, trazendo à discussão questões mais profundas. Na antiguidade, se duas pessoas estivessem em conflito em razão de inadimplemento de dívida, o credor poderia se apropriar de qualquer bem do devedor, a fim de satisfazer seu crédito, sem que houvesse prática de qualquer ilícito, agindo conforme o que denominamos de autotutela.
Nesse mesmo sentido, podemos trazer exemplos da Roma Antiga, onde devedores eram escravizados para sanarem suas dívidas. No decorrer dos séculos, e diante de inúmeras injustiças cometidas, desenvolveu-se e consolidou-se a noção de Estado de Direito, com conflitos resolvidos por autoridade estatal imparcial, culminando em um sistema de justiça mais civilizado, trazido para os dias atuais através do poder judiciário.
No Direito Brasileiro a autotutela só é aceita em raríssimas exceções expressamente previstas em lei, como por exemplo, o art. 1.210, § 1º do Código Civil, que trata da manutenção ou restituição da posse turbada pela própria força do proprietário. E mais, a autotutela foi tipificada penalmente, através do art. 345 do Código Penal, que a define como crime de exercício arbitrário das próprias razões, que nada mais é o antigo conceito de fazer justiça com as próprias mãos para satisfazer pretensão, ainda que legítima.
As conseqüências de posicionamentos tão divergentes certamente refletirão nas futuras discussões sobre o tema, abrindo margem para infinitas esteiras de raciocínio. Há de se ressaltar ainda que o direito não é uma ciência exata, pois de maneira muito peculiar vai se reformulando e se adaptando através dos tempos à realidade da época, tal como os crimes digitais.
Nesse sentindo, temos que ponderar que todas as teses aqui expostas de maneira superficial refletirão nas políticas e regulamentos de segurança das empresas e no gerenciamento de riscos, sendo essas estratégias decisão dos administradores, que certamente buscam resguardar suas corporações, sempre tendo como objetivo maior evitar o impacto de condutas antijurídicas que possam prejudicá-las.
Desse modo, chegamos à cautelosa conclusão que nosso país tem ampla legislação cível e penal que adequadamente manejadas por profissionais especializados podem afastar a sensação de impunidade, resguardando os interesses da corporação em conformidade com os aspectos legais, sem gerar riscos tão elevados para as empresas, que na realidade são as grandes vítimas dos criminosos virtuais.
Autores:
Renato Opice Blum – Advogado e economista; Professor e Árbitro em diversas instituições; Presidente do Conselho de Comércio Eletrônico da Federação do Comércio/SP; autor da obra "Direito Eletrônico – a internet e os tribunais". Renato@opiceblum.com.br
Camilla do Vale Jimene
Advogada e professora de Direito Eletrônico. camilla@opiceblum.com.br