Vivemos uma era em que os algoritmos passaram a ocupar o centro do discurso sobre o futuro do trabalho, da educação e até da governança social. Em nome da inovação, muitos embarcam na promessa de que a inteligência artificial será a mente por trás das decisões humanas. Mas é hora de colocar as coisas em perspectiva: a máquina deve trabalhar para o homem — e não pensar por ele.
Essa inversão de papéis, que por vezes é romantizada como "progresso", carrega um risco profundo de abdicação da responsabilidade humana. Quando nos acostumamos a delegar o pensamento — e não apenas a execução — para sistemas automatizados, abrimos espaço para uma nova forma de alienação: a tecnocracia algorítmica, onde decisões complexas, com impacto social e ético, são terceirizadas a modelos opacos, muitas vezes treinados sobre dados enviesados, incompletos ou manipulados.
Mas há um risco ainda mais silencioso e insidioso: o atrofiamento da nossa própria capacidade de pensar. Afinal, o que acontece quando deixamos de refletir criticamente porque a resposta já vem "pronta"? Quando aceitamos a recomendação do algoritmo como se fosse uma verdade neutra e inquestionável? O perigo não está apenas no erro do sistema, mas na passividade que ele instala. O raciocínio crítico, o exercício da dúvida, o conflito necessário da escolha — tudo isso pode ser substituído por uma aceitação automática, preguiçosa, quase anestesiada.
A história mostra que toda tecnologia tem o potencial de ampliar ou reduzir capacidades humanas. O livro ampliou a memória coletiva, mas também tornou a memorização menos necessária. O GPS otimizou a navegação, mas enfraqueceu nossa orientação espacial. A IA, agora, nos oferece soluções, diagnósticos, respostas, conteúdo, decisões — tudo em tempo real. Mas a que custo? Quando o pensar se torna opcional, ele se torna obsoleto.
Não é coincidência que surjam, ao redor do mundo, legislações tentando frear ou ao menos compreender os impactos dessa aceleração. O Brasil, com seu debate em torno de um Marco Regulatório da IA, e a Europa, com o AI Act, mostram que o mundo começa a reconhecer o que muitos fingiram não ver: a inteligência artificial não é neutra. Ela reflete — e amplifica — os valores, preconceitos e interesses de quem a desenha e de quem a controla.
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Por isso, mais do que treinar modelos, precisamos treinar consciência. Mais do que desenvolver ferramentas, devemos cultivar critérios. A verdadeira transformação digital não está em substituir pessoas por sistemas, mas em ampliar a capacidade humana por meio da tecnologia, respeitando os limites entre o que é automatizável e o que é inegociavelmente humano: a empatia, o julgamento ético, a intuição, a responsabilidade.
A máquina pode vasculhar bilhões de dados em segundos. Pode prever padrões, sugerir caminhos, acelerar processos. Mas só o ser humano pode decidir com consciência o que deve — ou não — ser feito. Só ele pode responder por suas escolhas. Só ele pode perguntar: "Por quê?", e não apenas "Como?".
Transformar a IA em um servo inteligente é um avanço. Submetê-la à função de oráculo absoluto é retroceder — delegar nosso pensamento ao impensado.
Assim, fica o alerta para conselheiros, gestores, educadores e líderes públicos: não basta adotar IA, é preciso governá-la. E governar não é controlar apenas sua performance, mas sobretudo seus propósitos. É garantir que a tecnologia sirva à autonomia humana — e não a substitua.
Como sociedade, temos uma escolha. Ou usamos a máquina para libertar o pensamento humano, ou seremos nós a engrenagem de um sistema que já não pensa — apenas calcula.
Enio Klein, engenheiro de sistemas, influenciador e apoia empresas a desenvolverem modelos de negócios digitais, colaborativos e sustentáveis. Foco em privacidade, proteção e governança de dados. Sócio da Doxa Advisers e Professor de Pós-Graduação.
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