Direito Digital: o que de fato é proporcional na era da informação?

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Não é de hoje que a arquitetura da Internet provoca debates acirrados nos mais diversos "fronts", sobretudo relacionados a questões de jurisdição e soberania. Lembro-me do blackout promovido pelos big players em 2012 com o apoio da massa dos internautas contra os projetos de leis americanos que visavam criar obrigações aos provedores nacionais de forma a impedir a violação da DMCA (Digital Millenium Copyright Act), norma americana de proteção aos direitos intelectuais.

Conhecidos pelos acrônimos SOPA (Stop Online Piracy Act) e PIPA (Protect IP Act), resumidamente tais projetos tinham como objetivo punir os provedores de aplicações americanos e administradoras de pagamento que pudessem de alguma forma contribuir com sites estrangeiros que hospedassem conteúdo que violasse direitos autorais.

A despeito das queixas aos projetos, porquanto poderiam violar a privacidade não só de americanos como de todos os internautas, fato é que os projetos surgiram pela dificuldade em se fazer cumprir uma lei nacional em solo estrangeiro, sobretudo quando não há tratados de cooperação ou esses estão defasados tornando extremamente burocrática a colaboração entre as nações.

Esse é apenas um exemplo de que a Internet, pelo dinamismo e enorme difusão global, promove desafios jurídicos nunca antes enfrentados. Aqui no Brasil o debate do momento é a dificuldade dos juízes em obter dos grandes provedores (Facebook e Google, por exemplo) informações importantes à apuração de crimes, porquanto sempre se escusam sob alegação de que as empresas responsáveis pelos dados são aquelas sediadas nos Estados Unidos e não suas filiais brasileiras ou que os dados solicitados não são armazenados ou, finalmente, que tais requisições devem ser feitas via diplomática.

Final do ano passado, uma ordem de suspensão do Whatsapp no Brasil causou comoção generalizada. Muitos sustentaram que se tratava de uma medida extrema e absolutamente desproporcional. Sugeriram que haveriam outras formas de exigir o cumprimento de uma ordem judicial sem causar transtornos aos cidadãos, como a fixação de multas (sugerida pelo próprio desembargador que cassou a decisão na oportunidade do julgamento) ou prisão por desobediência.

Agora, um juiz de Sergipe, após fixar multas e intimar por diversas vezes o Facebook a cumprir a ordem de fornecimento de informações necessárias a uma investigação de organização criminosa de tráfico de drogas, resolveu ordenar a prisão não por desobediência, mas com base na Lei nº 12.850/13 (Lei de combate às organizações criminosas), tipificando a conduta como sendo um embaraço à investigação criminal (art. 2º, §1). Essa decisão, tal como a aquela de suspensão do aplicativo Whatsapp, também foi rapidamente cassada. Entendeu o Desembargador relator do habeas corpus não haver provas de que tivesse o diretor do Facebook agido com "predisposição de embaraçar ou impedir as investigações para favorecer a organização investigada".

O que de fato é proporcional? Como investigar os crimes, se na era da informação, os criminosos também se comunicam pelas plataformas digitais e essas não colaboram com a justiça? O Poder Judiciário nacional se vê diante de um imbróglio, típico da era digital, tal qual aquele exemplo vivenciado nos EUA, face aos limites da jurisdição e obscuridade na forma como são coletados, armazenados e tratados os dados informáticos. Num momento, aplica pena de suspensão do aplicativo, noutro, ordena prisão e também recaem pesadas críticas, novamente sobre a tese da desproporcionalidade.

Quem milita na área sabe que as multas não motivam os grandes provedores como Google e Facebook a cumprirem as ordens, e prisão por crime de desobediência, sendo de menor potencial ofensivo, é facilmente derrubada pelos tribunais superiores e, até mesmo, a prisão preventiva com base na Lei nº 12.850/13 é, de fato questionável, do ponto de vista jurídico. Apesar do clamor social é bem provável que num futuro próximo a suspensão dos serviços seja novamente ordenada, diante da ineficácia da multa e da provável ilegalidade da prisão. Daí, em que pese o uso massificado das redes sociais e uma vez se tratando de suspensão de apenas um serviço e não bloqueio de toda a Internet, seja, de fato a medida mais proporcional, desde que em último caso e quando a obrigação seja exequível.

Assim, faz-se importante trazer à discussão quando de fato há o descumprimento ou quando, na realidade, trata-se de obrigação impossível de cumprimento. Sob a luz do recente caso concreto, duas questões se põem em debate: a primeira questão é sobre a legitimidade, a segunda quanto a natureza de determinados dados informáticos.

No tocante à legitimidade, o artigo 11 da Lei nº 12.965/14 (Marco Civil da Internet) é claro ao estabelecer que a legislação brasileira deve ser aplicada quando forem tratados dados de terminais localizados no Brasil ainda que o provedor que faça o tratamento dos dados esteja sediado no exterior, mas aqui estiver estabelecida uma integrante do grupo econômico. Como o Facebook Inc. pertence ao mesmo conglomerado do Whatsapp Inc. (por mais que insista a empresa no contrário), e aquele possui pessoa jurídica que opera comercialmente no Brasil (Facebook Serviços Online do Brasil Ltda), deve respeitar as ordens emanadas pela justiça brasileira, ficando sujeito às sanções por eventual descumprimento.

Quanto à natureza dos dados requisitados, fundamental distinguir: (a) registros de acesso a aplicações de Internet – data e hora relacionados a um determinado número IP; de (b) conteúdo das comunicações, que são as próprias conversas dos usuários. Para o primeiro, é possível a obtenção dos dados até mesmo para instruir um processo cível (art. 22 do MCI), enquanto para o segundo apenas em processos criminais (inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal); para os registros de acesso, o Marco Civil previu, em seu artigo 15 o armazenamento obrigatório pelos provedores por no mínimo seis meses, enquanto se manteve silente – certamente para preservar a privacidade – em relação ao conteúdo das comunicações. Assim, o provedor de aplicações não está obrigado a fornecer o conteúdo das conversas quando não os armazena, não podendo, consequentemente, ser sancionado por essa omissão haja vista a ausência de obrigação legal de guardar tais dados.

Havendo a possibilidade técnica (provedor que de fato armazena os dados) e obrigação legal de fornecer os dados, o não atendimento a uma ordem judicial impõe sanções e é a partir daí que surge o embate envolvendo a análise da proporcionalidade, adequação e necessidade da medida, bem como os aspectos tocante à soberania dos países. Somente o dinamismo das relações via web, sua abrangência massificada e global é que provoca tais desafios.

Rafael Fernandes Maciel, advogado, presidente do IGDD- Instituto Goiano de Direito Digital e da CDDI – Comissão de Direito Digital e Informática da OAB-GO. Comentarista especializado do Observatório do Marco Civil da Internet. Especializado em Direito Empresarial pela FGV e com MBA em Mídias Digitais pelo IPOG. Coautor da obra Direito & Internet III: Marco Civil da internet (Lei n. 12.965/2014) Tomo II. Editora Quartier Latin, 2015, com o artigo "A Requisição Judicial de Registros de Conexão e Aplicações no Marco Civil".

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