As trancas da Lei de Internet

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O Marco Civil da Internet (Projeto de Lei no 2126/11) tranca a pauta de votação da Câmara dos Deputados desde o último dia 28 de outubro, data na qual o prazo para sua apreciação em regime de urgência constitucional se esgotou. A solicitação de urgência foi assinada pela Presidente Dilma Rousseff em meio às denúncias de atos de espionagem contra o Governo brasileiro e contra a própria Presidente, supostamente cometidos pela Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos.  Quem acompanha o processo de perto duvida que, mesmo diante do regime de urgência, o Projeto seja votado ainda este ano. 

Interessante notar que, desde o início das discussões, os pontos de discórdia se confundem com o tripé de sustentação da nova lei, qual seja: (i) a neutralidade de rede; (ii); a responsabilidade civil na internet; e (iii) a privacidade de dados pessoais e comunicações. Discorreremos sobre cada um destes, com breve investigação das polêmicas que os cercam, a seguir:

Neutralidade de rede

A neutralidade de rede é o princípio pelo qual o tráfego na internet não pode sofrer, exceto por justificativas técnicas e para a priorização de serviços de emergência, qualquer discriminação ou tratamento não isonômico. Bloqueios, monitoramento, filtros ou análise de conteúdos constituem exceções, justificando-se apenas para assegurar o bom funcionamento da rede.

Por este princípio, os provedores de conexão à internet não podem fazer distinção entre os pacotes de dados cursados na Internet. Por exemplo, ao prover a conexão a determinado usuário, o provedor não poderia, a um só tempo, permitir o tráfego de dados de e-mail e bloquear pacotes de vídeo (sob a justificativa de serem mais pesados). Colocado de outra forma, para que seja livre, a Internet deve ser cega no que respeita ao conteúdo que nela trafega.

O princípio é basilar para os provedores de aplicação (as pontocom), indústria que nasceu em ambiente de ausência de regulação e total liberdade. Já da perspectiva dos provedores de conexão (as teles), permitir o uso indiscriminado da conexão sem distinção do perfil do usuário gera questões de uso ineficiente, na medida em que não haveria correspondência adequada entre utilização e contraprestação pelo usuário.

Após 2 anos de trâmite legislativo, o impasse passou a ser menos conceitual e voltou-se mais para a discussão de detalhes no texto proposto. Sugerem os provedores de conexão que a redação atual do artigo 9o abre margem para interpretações dúbias, na medida em que permite o entendimento de que não será possível nem mesmo a oferta atual de planos de serviços, que são indiferentes ao conteúdo trafegado e fazem distinção apenas no que respeita à quantidade de pacotes trafegados e a velocidade de conexão.

Limites da responsabilidade do provedor de aplicações

Nesse ponto, a questão passa pela falta de previsão legislativa quanto à responsabilização civil (ou isenção de responsabilidade) do provedor de aplicações pela veiculação de conteúdo ilegal ou ofensivo a direito de terceiros. O Projeto vem para preencher a lacuna da lei.

A aprovação do Marco Civil terá reflexos em diversas áreas do Direito, tais como: (i) o direito autoral (e.g. disponibilização de músicas, vídeos e textos); (ii) propriedade industrial (e.g. venda de produtos falsificados); (iii) direitos de imagem (e.g. publicação de material de conteúdo pessoal); (iv) liberdade de expressão (e sua contrapartida, e.g. material de conteúdo ofensivo); e (v) questões tuteladas também pelo Direito Penal (e.g. hacking, malware, conteúdo pedófilo).

É na questão dos direitos autorais e conexos que alguma discordância ainda persiste. Pelo texto proposto, os provedores de aplicação não serão, a priori, responsáveis civilmente por danos causados por conteúdo gerado por terceiros. Somente passam a ser responsabilizados caso descumpram ordem judicial específica determinando a retirada do conteúdo do ar.

As empresas de mídia haviam conseguido inserir na proposta que antecedeu o texto atual (divulgado no início deste mês),exceção à necessidade de ordem judicial especificamente para conteúdo protegido por direito autoral. Pela exceção, o provedor de aplicação passaria a ser passível de responsabilização, na medida em que, notificado da existência de conteúdo protegido postado ilegalmente, optasse por não retirá-lo do ar (o sistema conhecido como notice and takedown).  Pela nova redação, a exceção foi mantida como princípio, mas sua efetividade dependerá de previsão legal específica (muito provavelmente será tratada na nova lei de direito autoral).  As empresas de mídia pleiteiam o texto retorne à redação original.

Privacidade

Foi aqui que a última versão do Projeto apresentou mais modificações. As denúncias de espionagem dos Estados Unidos contra o Governo e empresas brasileiras provocaram o reforço do texto no que respeita à garantia de privacidade dos usuários da internet. Princípios relativos ao direito à privacidade, antes concentrados em anteprojeto com a finalidade específica de proteger a privacidade de dados pessoais foram, em parte, reproduzidos no Marco Civil da Internet. Em sua inovação mais polêmica, o artigo 12 abriu a possibilidade para que o Poder Executivo determine que provedores de conexão e aplicação – este, virtualmente qualquer empresa que, a partir de oferta de aplicativo, faça uso da rede para a divulgação de seu negócio ou para qualquer outra forma de interação com seus clientes – que deem tratamento a dados pessoais ou trafeguem comunicações de internautas brasileiros fiquem obrigados instalar ou se utilizar em suas operações data centers localizados no território nacional.

Além disso, pelo novo texto, o Marco Civil (artigo 10, caput) determina que "[a] guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet […], bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas". Já o § 2o do mesmo artigo prevê que o conteúdo de comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial. O Marco Civil abraçou, ainda, os princípios da necessidade (ou minimização), finalidade e consentimento, pelos quais a coleta e utilização dos dados pessoais deve ser autorizada expressamente por seu titular, restringindo-se ao mínimo necessário para que a finalidade perseguida com sua coleta e tratamento seja atingida. 

Mudança talvez mais significativa foi a instituição, pelo novo artigo 13, de penalidades em decorrência da quebra de sigilo. Dentre as punições, incluem-se multa de até 10% do faturamento bruto, no último exercício e excluídos os impostos, do grupo econômico que deu causa à quebra de sigilo no Brasil e a possibilidade de suspensão temporária ou proibição de suas atividades que envolvam o processamento dados pessoais ou as comunicações via internet.

Em matéria de privacidade as discussões se dão entre governo e inciativa privada. O maior ponto de discórdia é a proposta de guarda de dados obrigatória em território nacional. A pouca efetividade da medida, somada à reação negativa de especialistas e empresários, leva a crer que seja retirada do texto que será submetido a votação.

Gustavo Artese é master of Laws (LL. M.) pela Universidade de Chicago e Advogado responsável pelas práticas de Propriedade Intelectual e Direito Digital do escritório Vella, Pugliese, Buosi e Guidoni Advogados

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