No Brasil, muitas coisas relacionadas ao tema da privacidade aconteceram no último mês de abril. Jair Bolsonaro sancionou a MP 954/2020 que determina que as empresas de telecomunicações compartilhem, em até 7 dias, com o IBGE o nome completo, endereço completo e números de telefone de todas as pessoas do país. A justificativa foi a criação de uma estatística oficial durante a situação de emergência da saúde pública decorrente da covid-19.
Em poucos dias, quatro Ações Indiretas de Inconstitucionalidade (ADINs) foram propostas no Supremo Tribunal Federal (pela OAB e por partidos como PSB, PSDB e PSOL). No último dia 24 de abril, a Ministra Rosa Weber suspendeu, em decisão liminar, os efeitos da MP 954/2020, na ADIN proposta pelo Conselho Federal da OAB.
Os argumentos utilizados merecem destaque, principalmente porque constituem importante construção e interpretação de alguns dos princípios da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (que ainda sequer entrou em vigor). Sobre a finalidade da coleta dos dados pessoais, o voto pontua o seguinte:
"Observo que o único dispositivo da MP 954/2020 a dispor sobre a finalidade e o modo de utilização dos dados objeto da norma é o parágrafo 1º do seu art. 2º. E esse limita-se a enunciar que os dados em questão serão utilizados exclusivamente pela fundação IBGE para a produção de estatística oficial, com o objetivo de realizar entrevistas em caráter não presencial no âmbito de pesquisas domiciliares. Não delimita o objeto da estatística a ser produzida, nem a finalidade específica, tampouco a amplitude. Igualmente não esclarece a necessidade de disponibilização dos dados nem como serão efetivamente utilizados."
A interpretação dada pelo STF é irretocável. Para o cumprimento do princípio da finalidade, não basta sua indicação genérica. A aplicação deve ser detalhada, minuciosa e precisa, a fim de permitir o controle pelo titular dos dados e por toda a sociedade. Sobre o sigilo dos dados, previstos no artigo 3º da MP 954/2020, assim se manifestou o STF na mesma decisão:
"Nada obstante, a MP 954/2020 não apresenta mecanismo técnico ou administrativo apto a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida, seja na sua transmissão, seja no seu tratamento. Limita-se a delegar a ato do Presidente da Fundação IBGE o procedimento para compartilhamento dos dados, sem oferecer proteção suficiente aos relevantes direitos fundamentais em jogo. Enfatizo: ao não prever exigência alguma quanto a mecanismos e procedimentos para assegurar o sigilo, a higidez e, quando o caso, o anonimato dos dados compartilhados, a MP 954/2020 não satisfaz as exigências que exsurgem do texto constitucional no tocante à efetiva proteção de direitos fundamentais dos brasileiros."
Em tempos de tanta incerteza sobe proteção de dados, o STF passa uma mensagem bastante clara e útil para quem está estudando o tema ou para quem está implementando programas de proteção de dados pessoais no esteio da Lei 13.709/2018. A interpretação da Corte Suprema merece ser analisada e seguida.
Aguardemos o desfecho final desse julgamento com atenção.
Marcelo Chiavassa, professor de Direito Digital e Direito da Inovação da Universidade Presbiteriana Mackenzie Campinas.