Transparência sob ataque: o risco de transformar proteção em esconderijo

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Você confiaria num sistema de justiça onde os processos desaparecem dos olhos da sociedade? Onde fraudes e manipulações jurídicas podem prosperar longe de qualquer fiscalização? Pois é exatamente esse o risco que se esconde por trás do uso indevido — e cada vez mais banalizado — do segredo de justiça. O que deveria ser uma ferramenta legítima de proteção à intimidade está sendo distorcido, abrindo espaço para práticas dolosas, abusos processuais e até golpes travestidos de legalidade.

A recente onda de fraudes, como o chamado "golpe do falso advogado", reacendeu o debate sobre o equilíbrio entre privacidade e transparência no processo judicial. A preocupação é legítima: criminosos têm utilizado nomes de advogados e decisões forjadas para aplicar golpes em empresas e cidadãos. No entanto, a reação de parte da advocacia — ao pedir o sigilo generalizado dos processos com base em riscos genéricos — acende um alerta perigoso. Afinal, o segredo de justiça, quando decretado sem critério, compromete a própria integridade do Judiciário.

Embora a intimidade e a proteção de dados sensíveis tenham respaldo constitucional e legal, a publicidade dos atos processuais continua sendo a regra, enquanto o segredo de justiça permanece como exceção. O Código de Processo Civil e a Constituição Federal são claros: só se justifica o sigilo quando houver interesse público ou social relevante, ou para proteger a intimidade em casos específicos como ações familiares, guarda, alimentos, arbitragem confidencial ou segredo industrial.

A utilização do sigilo sem base legal ou constitucional concreta abre caminho para ocultações dolosas e estratégias processuais escusas. Há casos em que partes e advogados se aproveitam do segredo para ocultar precedentes desfavoráveis, multiplicar ações idênticas sem detecção ou conduzir litígios paralelos que dificultam a defesa do réu e a prevenção de fraudes pelo próprio Judiciário. O resultado? Um sistema mais nebuloso, vulnerável e injusto.

É preciso lembrar que a publicidade é um pilar de controle democrático. A sociedade, a imprensa e os operadores do Direito precisam ter acesso aos processos para fiscalizar a Justiça, identificar desvios e garantir que o Judiciário não seja instrumentalizado como meio de obtenção de vantagens indevidas. O sigilo, quando utilizado de forma indevida, não só dificulta o rastreio de fraudes e de litigância abusiva, como ainda impede o exercício pleno da advocacia, restringindo o acesso de colegas a teses jurídicas e decisões importantes para casos semelhantes.

Mesmo diante do legítimo receio causado pelos golpes em nome de advogados, o segredo de justiça não pode ser tratado como escudo automático contra riscos genéricos. O uso dessa ferramenta exige prova concreta de ameaça à parte ou à integridade do processo, sob pena de se converter em um mecanismo de blindagem indevida. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), por sua vez, não impõe o sigilo de processos, mas sim o tratamento proporcional e adequado das informações sensíveis. Muitas vezes, soluções menos invasivas — como a ocultação de endereços, CPFs ou dados bancários — são suficientes para resguardar direitos fundamentais, sem sacrificar a transparência.

O impacto do uso indiscriminado do segredo de justiça vai além da transparência e alcança a própria construção do Direito. A restrição ao acesso de decisões e fundamentos jurídicos dificulta o trabalho de advogados, magistrados e pesquisadores, que dependem da publicidade dos atos para mapear tendências jurisprudenciais, estudar teses e promover o amadurecimento do entendimento judicial sobre temas sensíveis. É como tentar construir um edifício sobre alicerces invisíveis. Essa opacidade não apenas mina a previsibilidade do Judiciário, como abre caminho para insegurança jurídica e desigualdade de tratamento entre as partes.

Banalizar o segredo de justiça não é apenas um erro jurídico — é uma ameaça institucional. Permitir que essa prática se espalhe com base em argumentos genéricos pode comprometer a segurança jurídica, dificultar a formação de precedentes, fomentar a reincidência de teses já rejeitadas e criar um ambiente favorável à litigância de má-fé.

Para que não se consolide um retrocesso institucional, é essencial o protagonismo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e dos tribunais superiores na promoção de uma regulamentação clara e criteriosa sobre o uso do segredo de justiça. A atuação do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) como instâncias de controle externo, somada ao fortalecimento de mecanismos de auditoria, ciência de dados, inteligência setorial e fundamentação pública, reforça o equilíbrio entre privacidade e transparência.

A gravidade dos golpes envolvendo nomes de advogados é real e deve ser combatida com rigor — mas não às custas da transparência do sistema judicial. O segredo de justiça deve ser excepcional, proporcional, fundamentado e necessário. Fora disso, transforma-se em um manto de invisibilidade perigoso, que pode esconder desde fraudes processuais até má-conduta profissional.

É pela luz que se afasta a sombra — inclusive no Poder Judiciário. O remédio não pode virar veneno, e mais do que nunca, a imprensa, a sociedade e os operadores do Direito precisam defender a publicidade dos atos judiciais como ferramenta de fiscalização e justiça.

Régis Benante Ribeiro,  Coordenador Jurídico?no Mandaliti Advogados.

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