No último dia 24 de abril, o Governo Federal promulgou a Lei nº 14.553 [1], de 20 de abril de 2023, com o objetivo de disciplinar os procedimentos para a coleta de informações sobre a distribuição de diferentes grupos étnicos e raciais no mercado de trabalho brasileiro. Com a implementação desta lei, é necessário que todos os registros administrativos direcionados, tanto à Administração Pública quanto aos empregadores privados, incluam campos que identifiquem o segmento étnico e racial dos trabalhadores. Essa identificação deve ser feita por meio da autoclassificação em grupos já estabelecidos.
Essa exigência se estende a uma variedade de documentos e registros, incluindo formulários de admissão e demissão, registros de acidentes de trabalho, instrumentos do Sistema Nacional de Emprego, a Relação Anual de Informações Sociais, documentos para inscrição de segurados e dependentes no Regime Geral de Previdência Social e questionários de pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A lei também instrui o IBGE a realizar uma pesquisa a cada cinco anos para determinar a proporção de ocupação dos diferentes grupos étnicos e raciais no setor público, pois esses dados serão úteis para a implementação da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial.
Apesar da aparente boa intenção do legislador em obter dados e informações para que seja possível promover a igualdade racial no Brasil, permitindo que as políticas públicas e práticas de emprego sejam mais eficazes na promoção da diversidade e da igualdade racial, aspectos como a inexistência na prática do dia-a-dia dentro das organizações, muitas vezes, de formulário de candidatura e de formulário de admissão, assim como a extinção da RAIS e a ausência de campos específicos no e-Social, podem tornar a lei inócua ou, ainda pior, atrair riscos aos empregadores privados.
Nesse aspecto, o que se propõe aqui, inicialmente, é que sejam tomadas medidas de adequação preventivas, com a criação ou separação do formulário de candidatura do formulário de admissão.
Formulário de candidatura X Formulário de Admissão
O formulário de candidatura consiste no instrumento utilizado ao longo de um processo de recrutamento e seleção, o qual é preenchido pelo candidato aspirante a um posto de trabalho, compreendendo habitualmente solicitação de informações de caráter pessoal, profissional e acadêmico e que podem auxiliar o empregador na avaliação da adequação do candidato à vaga de emprego. Este formulário deverá coletar apenas informações essenciais a esta avaliação, atendendo o princípio da necessidade e, consequente, minimização dos dados, previsto na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD – Lei nº 13.709/2018) [2], como informações de contato, experiências profissionais pregressas, formação acadêmica, aptidões e competências, contribuindo para a identificação dos perfis mais promissores para uma subsequente entrevista ou outra fase do processo seletivo. Em regra, não devem ser solicitados dados pessoais sensíveis, salvo para vagas próprias destinadas à promoção da diversidade e inclusão.
Já, o formulário de admissão somente deve ser preenchido quando o candidato foi selecionado para a vaga, momento em que se está dando início formal ao seu vínculo de emprego com a organização. Este novo documento faz parte do processo efetivo de contratação e costuma incorporar informações necessárias para o registro do empregado na empresa, tais como detalhes do contrato de trabalho, informações bancárias para o depósito do salário, detalhes sobre benefícios e, a partir da Lei nº 14.553 [3], de 20 de abril de 2023, passará também a incluir a autoclassificação étnico-racial do novo empregado. Este formulário assinala a transição de um candidato para a condição de empregado da empresa.
O formulário de candidatura é, pois, diferente do de admissão, tendo por finalidade apenas e tão somente a avaliação e seleção de potenciais novos empregados durante o processo de recrutamento, enquanto o formulário de admissão é utilizado somente após a escolha ter sido efetuada, quando o candidato passará formalmente à condição de empregado da organização.
Princípios da Finalidade e da Necessidade
Os fundamentos da finalidade e da necessidade são preceitos essenciais da LGPD, guiando as organizações sobre como coletar, processar e armazenar dados pessoais. O fundamento da finalidade determina que a coleta e o tratamento de dados pessoais devem se destinar a objetivos legítimos, precisos, claramente definidos e previamente comunicados ao titular dos dados, sem a possibilidade de um posterior processamento incompatível com tais finalidades. Isso significa que as organizações precisam ser transparentes sobre as razões para a coleta dos dados pessoais e como pretendem utilizá-los.
O princípio da necessidade, por sua vez, restringe a coleta de dados ao mínimo exigido para a execução das finalidades propostas. As organizações devem assegurar que estão coletando apenas os dados estritamente necessários para alcançar os propósitos declarados, sem informações excessivas.
Princípio da "Não Discriminação"
O princípio da "não discriminação" é basilar na LGPD e assegura que o tratamento de dados pessoais não seja usado para propósitos discriminatórios, ilícitos ou abusivos. Este preceito reitera o compromisso com o tratamento equitativo e justo de todos os titulares de dados, o que significa que as organizações não podem empregar os dados coletados de maneira que possa lesar um indivíduo, como por exemplo, negando a este oportunidades de empregos em virtude de sua etnia, gênero, orientação sexual, entre outros atributos pessoais.
Este princípio é vital para fomentar uma sociedade mais justa e inclusiva, onde todos os indivíduos sejam tratados com respeito, dignidade e igualdade de oportunidades.
Princípios da Transparência e Livre Acesso
Considerando o dever de informação do agente de tratamento para com o titular dos dados pessoais, acerca do tratamento de seus dados para o atendimento ao princípio do livre acesso, é de suma importância que ao realizar a coleta de dados sobre o segmento étnico e racial do trabalhador, no momento do preenchimento do formulário de admissão, as empresas informem de forma transparente, com linguagem clara e de forma adequada, por meio de seus Avisos de Privacidade, que essa coleta tem como finalidade o cumprimento de uma obrigação legal imposta pela Lei nº 14.553 de 2023, além, é claro, de comunicar as demais características referentes ao tratamento de dados, conforme previsão do artigo 9º da LGPD.
Requisitos Legais para o Tratamento de dados pessoais
Além da observância de princípios de proteção de dados, como os acima mencionados, a LGPD determina que o tratamento de dados pessoais para ser lícito deve estar sustentado em uma das bases legais previstas no artigo 7º ou no artigo 11º da Lei, a depender se o tratamento abrange dados pessoais comuns ou dados pessoais sensíveis.
O dado referente à origem racial ou étnica é considerado dado pessoal sensível, a teor do artigo 5º, inciso II, da LGPD.
Nesse caso, por tratar-se de uma coleta obrigatória de dados pessoais sensíveis, a base legal para o tratamento desses dados deverá ser o "cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador", prevista no artigo 11, II, item a, da LGPD.
Faz-se necessário destacar que a determinação legal é explícita no que se refere ao preenchimento de campos com dados étnicos e raciais no formulário de admissão. Assim, caso a empresa colete esses dados no formulário de candidatura, esta hipótese legal não poderá ser invocada, e, caso não haja o enquadramento em outra hipótese legal, a referida coleta poderá resultar em tratamento excessivo e ilícito de dados pessoais.
Assim, embora a intenção seja a promoção da igualdade étnica e racial, a coleta de dados sensíveis, potencialmente discriminatórios, no estágio de candidatura pode inadvertidamente levar à discriminação, mesmo que não intencional, no processo de seleção e recrutamento.
Alerta-se, desse modo, que, se tal informação, for mal utilizada, ou mal interpretada, pode reforçar estereótipos ou preconceitos existentes, em vez de promover a diversidade e a inclusão. Portanto, é crucial ponderar cuidadosamente esses riscos e garantir que a coleta de dados pessoais sensíveis seja feita com licitude, ética, transparência e responsabilidade.
Autores
Rafael Mosele, Presidente da Comissão de Relações do Trabalho do Instituto Nacional de Proteção de Dados – INPD. Membro do Comitê de Relações do Trabalho e LGPD do Instituto Mundo do Trabalho. Membro da Comissão de Direito Digital e Proteção de Dados da OAB/PR – 2022-24
Selma Carloto, Vice-Presidente da Comissão de Relações do Trabalho do INPD. Professora da FGV de MBA e Pós-graduação. Autora e coordenadora de obras sobre a Lei Geral de Proteção de Dados e de Compliance Trabalhista.
Débora Sirotheau, Membro do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade – CNPD. Vice-Presidente da Comissão Especial de Proteção de Dados do Conselho Federal da OAB. Presidente da Comissão Estadual de Proteção de Dados da OAB/PA. Membro da Comissão de Relações do Trabalho do Instituto Nacional de Proteção de Dados – INPD.
Janaina Lima de Souza, Membro da Comissão de Relações do Trabalho do INPD. Membro da Comissão de Governança e Compliance do INPD. Membro Relatora da Comissão de Direito Digital e Proteção de Dados da OAB/PR – 2022-24. Membro Relatora da Comissão de Estudos sobre Compliance e Anticorrupção Empresarial da OAB/PR – 2022-24.
Notas
[1] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14553.htm
[2] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm
[3] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14553.htm