A incorporação da tecnologia de reconhecimento facial nos estádios de futebol no Brasil, uma realidade imposta pela Lei Geral do Esporte (Lei nº 14.597/2023), é uma jogada que coloca o país na vanguarda da segurança esportiva, mas que também levanta um debate acalorado sobre os riscos para a privacidade individual.
Este movimento segue uma tendência internacional, com nações como os Estados Unidos e o Reino Unido já implementando tais tecnologias em seus eventos esportivos. Enquanto há elogios pela eficácia na segurança, as críticas se concentram nas possíveis violações à privacidade que tais sistemas podem acarretar.
O cenário brasileiro é especialmente complexo devido ao robusto arcabouço legal que inclui a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD, Lei nº 13.709/2018), que estabelece diretrizes para o tratamento de dados pessoais e sensíveis. A lei enfatiza o consentimento explícito do titular dos dados como uma das possíveis hipóteses de tratamento dos dados e os princípios de adequação, necessidade e finalidade.
Vale evidenciar que, sendo a Lei Geral do Esporte uma Lei Federal, caso seja mantida a obrigatoriedade de uso do reconhecimento facial, a base legal aplicável, salvo melhor juízo é a prevista no artigo 11, II, a da LGPD, qual seja: "cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador"
Em complemento, a Proposta de Lei 2.745/23 propõe uma regulamentação detalhada para a utilização da biometria facial, assegurando que seu uso não comprometa os direitos à privacidade. A proposta ressalta a não obrigatoriedade da adoção da tecnologia, mas estabelece parâmetros claros para quando e como ela deve ser utilizada.
A segurança nos estádios, uma preocupação constante, é prometida ser reforçada pela tecnologia, com a expectativa de reduzir filas, combater o cambismo e identificar indivíduos com restrições de acesso. Por outro lado, o potencial de violação de privacidade através da coleta massiva de dados biométricos e a possibilidade de discriminação e identificações errôneas são preocupações que não podem ser ignoradas.
Os benefícios da tecnologia de reconhecimento facial nos estádios incluem maior eficiência no controle de acesso e uma experiência aprimorada para os torcedores, enquanto os contras envolvem questões de privacidade e o risco de discriminação. A lei busca um equilíbrio, promovendo a segurança sem sacrificar a privacidade, exigindo transparência e responsabilidade.
Uma das promessas mais atrativas do reconhecimento facial é sua capacidade de combater o cambismo e a utilização de ingressos falsos, dois problemas endêmicos que afligem eventos esportivos de grande escala. Ao vincular o ingresso à identidade biométrica do torcedor, o sistema cria uma barreira quase intransponível para aqueles que tentam burlar o sistema legal de vendas de ingressos.
O benefício é duplo: por um lado, desestimula o mercado negro ao tornar o ingresso intransferível sem o consentimento oficial e a verificação biométrica correspondente; por outro, protege o consumidor, assegurando que apenas os torcedores legítimos possam acessar o estádio e desfrutar do evento pelo qual pagaram. Isso não apenas aumenta a segurança dentro do estádio, como também promove uma experiência mais justa e agradável para todos.
Com o reconhecimento facial, o processo de entrada torna-se mais eficiente. Os torcedores não precisam mais manter o ingresso físico em mãos, reduzindo o risco de perda ou roubo. Além disso, a tecnologia permite uma entrada mais rápida e organizada nos estádios, diminuindo as longas filas que podem ser tanto uma frustração quanto um risco de segurança.
O impacto potencial na melhoria da administração dos estádios é significativo. Com uma entrada mais fluida e regulada, os organizadores podem gerir melhor o fluxo de pessoas, otimizando a experiência do usuário e a segurança geral. Além disso, ao erradicar o cambismo, a tecnologia de reconhecimento facial pode contribuir para um ambiente mais ético e transparente em eventos esportivos, reforçando a integridade do esporte.
Por fim, ao assegurar que cada ingresso corresponda a uma identidade verificada, os organizadores terão um controle mais preciso do número de pessoas presentes no evento, o que é crucial para o planejamento de emergências e a prestação de serviços no local. É uma estratégia que não apenas moderniza a gestão de eventos esportivos, mas também serve como uma demonstração de respeito e valorização aos torcedores legítimos.
Contudo, além das preocupações com a privacidade, o reconhecimento facial carrega desdobramentos sociais significativos, especialmente relacionados ao viés racial e à discriminação. Estudos têm demonstrado que algumas tecnologias de reconhecimento facial podem ter taxas de erro desproporcionalmente altas quando aplicadas a minorias étnicas, mulheres e grupos etários mais jovens ou mais velhos. No Brasil, onde a diversidade é a marca da nação, esses vieses tecnológicos podem levar a injustiças graves e aprofundar desigualdades sociais preexistentes.
A implementação desta tecnologia nos estádios, portanto, não pode ignorar tais vieses. É essencial que os sistemas adotados sejam auditados regularmente para precisão e justiça, e que existam mecanismos para corrigir rapidamente qualquer discriminação identificada. A transparência em relação ao desempenho do sistema e a disposição para abordar e mitigar vieses são críticas para manter a confiança do público.
Os desdobramentos de um reconhecimento facial mal aplicado podem ser vastos – desde a exclusão indevida de torcedores de eventos esportivos até interações mais graves com as autoridades de segurança. Portanto, a adoção dessa tecnologia deve ser acompanhada de uma política firme de igualdade e justiça, assegurando que todos os torcedores, independentemente de raça, gênero ou idade, possam desfrutar do esporte que amam sem temor ou preconceito.
A implementação desses sistemas exigirá uma colaboração entre autoridades públicas, clubes de futebol, torcidas organizadas e especialistas em proteção de dados, para assegurar a conformidade com os princípios de privacidade e a proteção contra abusos.
A discussão em torno do reconhecimento facial é um espelho das tensões entre a inovação tecnológica e os direitos individuais, colocando especialistas em tecnologia, legisladores, torcedores e cidadãos em um diálogo contínuo sobre o futuro da experiência esportiva. A tecnologia promete revolucionar a segurança nos estádios, mas é imperativo que se mantenha uma vigilância constante sobre as implicações para a privacidade e a proteção de dados.
O debate é complexo e multifacetado, com potenciais benefícios significativos para a segurança e a administração de estádios. No entanto, a implementação de tais sistemas deve ser cuidadosa e respeitosa das liberdades civis, com uma regulamentação que proteja tanto a segurança quanto a privacidade dos torcedores.
Este é um jogo que o Brasil está começando a jogar, e é crucial que seja jogado com respeito e responsabilidade. A tecnologia de reconhecimento facial pode ser um gol de placa para a segurança, mas não deve resultar em um cartão vermelho para a privacidade.
Walter Calza Neto, DPO do Sport Clube Corinthians Paulista.