Recentemente, foi revelado um megavazamento de dados[1] que chocou a todos em razão do volume de dados coletados e que expõe um aspecto muito crítico da digitalização da economia: as fraudes digitais. O que se sabe, por ora, é que 223 milhões de brasileiros, inclusive falecidos, estão com informações pessoais à venda na deep web[2] e podem ter seus dados utilizados de má-fé para diversos propósitos, especialmente para celebrar negócios jurídicos que, em um primeiro momento, aparentam ser uma transação comercial válida, mas que, quando identificados como fraudes, geram perdas consideráveis para as empresas e usuários que foram envolvidos no ilícito.
A fraude digital tem se tornado cada vez mais frequente no dia a dia dos brasileiros: uma pesquisa concluída em agosto de 2019 pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) aponta que, em 12 meses, mais de 12 milhões de brasileiros sofreram alguma fraude financeira. É estimado, ainda, que o prejuízo total suportado pelos usuários, no mesmo período, tenha chegado a R$ 1,8 bilhão[3].
As empresas que efetivam as transações financeiras também têm observado um crescente aumento no número de operações fraudulentas. A multinacional Experian[4], que emite relatórios anuais e de alcance mundial denominados de Global Identity and Fraud Report, indicou na edição de 2020 que, no em 2019, 57% das empresas relataram um volume superior de perdas associadas à abertura de contas e fraudes em contas bancárias, comparado ao percentual de 55% em 2018 e 51% em 2017[5]
Em regra, quando não reconhecida uma transação, a questão passa por um procedimento de disputa, sendo o prejuízo assumido por um ou mais elos da operação, entre os quais podemos citar exemplificativamente: marketplaces, entidade vendedora do bem ou serviço, credenciadoras ou subcredenciadoras, operadoras de cartão de crédito, instituição financeira, ou mesmo o consumidor / usuário final [6].
Particularmente sob a perspectiva das empresas, as perdas são amplamente referidas como "chargeback", que em termos gerais é entendido como o cancelamento de uma compra realizada via cartão de débito ou crédito. Sua causa, no entanto, não se atém somente às operações fraudulentas, mas também a desacordos comerciais, inadimplência ou situações similares.
Nesses casos, o ônus não somente é financeiro – quando o prejuízo é suportado pela companhia em favor do usuário – como também fiscal, uma vez que cada elo da transação normalmente já reconheceu uma receita operacional prévia e a ofereceu à tributação sua cota-parte, segundo o critério de competência.
É esperado, portanto, que no reconhecimento originário da transação tenha incidido Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), contribuições sociais PIS e Cofins e, eventualmente, Imposto Sobre Serviços (ISS).
Em relação aos chargebacks, a legislação tributária estabelece algumas vias para o tratamento jurídico da questão, que poderá ser mais adequado e otimizado se realizado um trabalho de análise e categorização material criteriosa do tipo de perda. A situação decorrente de simples inadimplência, por exemplo, está mais relacionada a uma perda dedutível, enquanto fraudes digitais correlacionam-se, em termos gerais, a um vício que invalida o negócio jurídico e, portanto, poderá ter tratamento de abatimento da receita.
Como as espécies de chargebacks são diversas e o tratamento pode diferenciar em cada caso, é comum que enquadramentos diferentes sejam adotados pelas empresas (por exemplo, perdas no recebimento de créditos, prejuízos por desfalque, despesas usuais e necessárias ou vendas canceladas), o que impacta diretamente a recuperação dos tributos federais e pode gerar resultados completamente diversos a depender da sistemática de tributação do contribuinte.
Já com relação a uma possível recuperação do ISS pago anteriormente à solução de uma disputa, a efetiva prestação do serviço, entre outros fatores, pode ser elemento relevante na análise da recuperação do tributo, a depender do caso concreto e do quanto estabelecido em legislação municipal.
Ainda estarrece a percepção de que, na prática, muitos contribuintes não possuem uma sistemática de recuperação dos tributos pagos nessas transações. Em um cenário mais preocupante, quando a efetuam, há sinais de que, muitas vezes não o fazem da forma juridicamente mais segura e nem criam mecanismos de prova para futura evidenciação, o que pode representar um contingente relevante em uma situação que já é de perda [7].
Nesta linha, tendo em vista que o megavazamento de dados deve contribuir para o aumento das operações fraudulentas e, em consequência, para o crescente prejuízo enfrentado pelas empresas, é recomendável que sejam redobradas as atenções quanto às práticas adotadas, a fim de que sejam mitigados os efeitos das perdas geradas por chargeback, em especial quanto aos custos fiscais eventualmente incorridos, e que sejam passíveis de recuperação.
Antonio Moreno e Daniela Armelin, advogados do departamento tributário do escritório ASBZ Advogados, em São Paulo.
NOTAS
[1] As notícias a respeito foram amplamente veiculadas na mídia, vide o link a seguir: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2021/01/28/vazamento-de-dados-de-223-milhoes-de-brasileiros-o-que-se-sabe-e-o-que-falta-saber.ghtml.
2] Termo que se refere ao conteúdo da rede mundial de computadores não indexável por mecanismos de busca padrão. Objetivamente, trata-se da parte menos acessível de dados e informações. Por possuírem menor rastreabilidade, é onde criminosos virtuais procuram agir.
[3] O release dessa pesquisa pode ser acessado em: https://site.cndl.org.br/mais-de-12-milhoes-de-consumidores-sofreram-alguma-fraude-financeira-nos-ultimos-12-meses-aponta-pesquisa-cndlspc-brasil/.
[4] É possível realizar o download do relatório completo em: https://www.experian.com/decision-analytics/global-fraud-report?intcmp=InsightsBlog-021120-experians-2020-global-identity-fraud-report.
[5] Todos os números apresentados tendem a já serem substancialmente superiores pelo aumento das operações comerciais online em 2020.
[6] A responsabilidade jurídica pela perda deverá decorrer dos termos contratuais e da legislação aplicável ao caso concreto.
[7] Apenas a título exemplificativo, é imprescindível uma análise pormenorizada das perdas experimentadas e das práticas adotadas pela empresa desde a materialização do negócio jurídico até o seu cancelamento, passando por todas as etapas dos processos internos para confirmação da fraude e comunicação às autoridades policiais, a fim de, em um segundo passo, conferir o adequado tratamento contábil-fiscal com base no entendimento jurídico adequado e de forma suportada nos precedentes administrativos e judiciais.