Quando pensamos em transformação digital, normalmente pensamos em setores de ponta e no impacto revolucionário da alta tecnologia nesses setores. Nos vem à cabeça as fintechs que estão revolucionando o mercado financeiro, digitalizando e automatizando as interações com os clientes; ou novas indústrias, munidas de tecnologias inovadoras, alterando de maneira definitiva as cadeias de produção. O varejo, no entanto, geralmente acaba esquecido nessa conversa, em grande parte porque o movimento de transformação digital desse segmento – a digitalização do varejo, ou seja, o comércio eletrônico – não é mais uma novidade. Mas é exatamente por não ser uma novidade, por já ter passado por um período intenso de transformação que o varejo, e as tendências do e-commerce, podem ensinar muito para outros setores da economia.
Na semana passada, lançamos na BigDataCorp, em parceria com o PayPal, a 7a Edição do Perfil do E-Commerce Brasileiro (https://bigdatacorp.com.br/estudo-perfil-do-e-commerce-brasileiro-7a-edicao/). Ao longo dos últimos oito anos temos acompanhado esse mercado e observado a evolução de diversas tendências sociais e tecnológicas. E temos visto que o e-commerce tem sido, de muitas formas, o "beta tester" de muitas das ferramentas que depois são aplicadas amplamente em outros mercados. Isso vai desde técnicas de marketing e vendas – como o uso de newsletters e técnicas de construção de interfaces visuais – até tecnologias de prevenção a fraudes em transações, como a identificação de pessoas através do seu comportamento de navegação nos sites e aplicativos.
As tendências e a evolução do e-commerce, portanto, podem nos passar uma boa percepção de como o processo de transformação digital deve evoluir em outros setores. A primeira grande lição que as empresas precisam aprender é a importância de oferecer aos clientes uma experiência simples, funcional e, acima de tudo, profissional. Quando começamos a mapear o mercado, há oito anos, os consumidores estavam dispostos a tolerar um certo grau de amadorismo por parte dos vendedores. Se o produto fosse interessante – ou se o preço fosse bom – as pessoas toleravam dificuldades no processo de compras, limitações na forma e nas condições de pagamento, dificuldades em falar com o SAC, e dezenas de outros problemas. Hoje isso não é mais verdade. Com a digitalização dos consumidores, o nível de expectativa é muito mais alto, e se a experiência não tiver qualidade, as pessoas rapidamente procuram uma alternativa melhor. Quem não atende às expectativas perde rapidamente clientes para a concorrência, podendo até mesmo desaparecer do mercado.
E não são só os consumidores que esperam a simplicidade. Uma lição importante para os provedores de tecnologia é que as empresas também querem mais facilidade e simplicidade, e oferecer soluções com essas características pode ser um fator determinante para se ganhar espaço no mercado. No caso do e-commerce, vimos o crescimento (de quase 25% ao ano nos últimos oito anos) se concentrar nas mãos das plataformas e ferramentas que tornaram a vida do lojista mais simples, facilitando a sua operação no ambiente digital. E, nos últimos três anos, estamos vendo esse movimento se repetir com o crescimento dos marketplaces e dos chamados "super apps", que possibilitam que qualquer empresa venda online sem ter que montar um site. A mesma tendência deve se repetir em todos os segmentos da economia. Se não for fácil para as empresas abraçarem a transformação digital, o ritmo dessa transformação será muito baixo.
A forma como o e-commerce evoluiu e adotou novas tecnologias também nos mostra a importância de fatores externos – externalidades – no processo de transformação. Um exemplo claro disso foi a adoção dos certificados SSL para criptografia de dados de clientes no comércio eletrônico. Até 2015, apenas 20% das lojas utilizavam essa tecnologia. A partir de 2016, quando o Google e outras empresas sinalizaram que os sites que não utilizassem o SSL seriam despriorizados nos resultados de buscas dos clientes, a adoção subiu rapidamente, ultrapassando os 90%. Por todo o discurso, que sempre existiu, de preocupação com a segurança dos consumidores, o que fez o mercado se mexer foi a imposição externa, com risco de impacto sobre os negócios. Podemos contrastar isso com a adoção do 3-D Secure (https://en.wikipedia.org/wiki/3-D_Secure) nos processos de pagamento do comércio eletrônico, que nunca deslanchou devido tanto à complexidade de implantação quanto a uma falta de obrigatoriedade para as lojas. Empresas, no final, são muito parecidas com pessoas. Só mudam os seus hábitos e a sua forma de operar se algum elemento externo as obrigar. Para alguns setores, esse evento foi a pandemia. Para a grande maioria, ainda não tivemos esse empurrão.
E a ausência desse empurrão toca em um último ponto relevante que podemos aprender com o e-commerce: a velocidade da transformação pode parecer muito mais rápida do que realmente é. Para quem está inserido no universo da tecnologia, ou em setores adjacentes, a impressão muitas vezes é de que a transformação já aconteceu, e de que os clientes e empresas já são totalmente digitais. Isso não poderia estar mais longe da verdade, como o próprio comércio eletrônico ilustra. Mesmo crescendo a uma taxa anualizada de quase 25% – mais do que o dobro do varejo tradicional -, mais de 90% do mercado ainda opera única e exclusivamente no mundo físico, com processos tradicionais. A velocidade com que os líderes do mercado evoluem não pode ser confundida com a realidade do mercado, de que a vasta maioria das empresas se move lentamente, e ainda opera em modelos convencionais. E isso é verdade para todos os setores da economia.
O comércio eletrônico representa a transformação digital do varejo, o que já vem ocorrendo há décadas. A evolução dele ao longo dos anos nos mostra a forma como essa transformação deve se desenrolar em outros mercados e em outros setores da economia. E o que os números mostram, acima de tudo, é que ainda estamos no princípio dessa jornada, e que a maior parte do mercado nem começou esse processo. Muitas novas tecnologias, novas empresas e até mesmo novas indústrias vão aparecer nos próximos anos, e muitas das empresas que estão na ponta do mercado hoje vão se tornar obsoletas e, eventualmente, desaparecer. Quem acredita que já sabe quais são os vencedores da transformação digital não pode estar mais enganado.
Thoran Rodrigues, Fundador e CEO da BigDataCorp