"Netflixzação" da educação corporativa: um caminho sem saída?

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Nos últimos anos, as plataformas de streaming de conteúdo, como a Netflix, serviram de inspiração para a criação de diversos modelos de educação corporativa baseados em acervos de vídeo aulas, com centenas de conteúdos para que os colaboradores pudessem acessar sob demanda.

Esse modelo, muitas vezes celebrado pelo seu apelo cativante, seu baixo custo, sua conveniência e escalabilidade, deu origem ao que chamamos de "neteflixação da educação corporativa".  Fundamentado na perspectiva tradicional de educação (aulas expositivas) que reforçam o modelo transmissionista focado em conteúdos e a passividade do aluno; por esse motivo essas plataformas têm se caracterizado pela criação de extensas bibliotecas de conteúdo e pela filosofia self learning, um tipo de aprendizagem em que o estudante é o responsável por gerir o seu próprio processo de aprendizagem.

"Uma aproximação que não foi suficiente para que a maioria dos trabalhadores entendesse como se desenvolver no pipeline de talentos," diz Mateus J. Daniel, no Chief Learning Officer, 2023.

Esse é um dos motivos pelos quais as empresas que adotaram esses modelos estão enfrentando desafios críticos: "falta de engajamento", "alta evasão" "perda de credibilidade", "desinteresse dos colaboradores em participar de programas de treinamento" e escassa aplicabilidade do estudo, emergiram como uma tendência crescente.

Perdidos, sem bússola, num mar de conteúdos

Em um cenário onde os colaboradores tiveram acesso a centenas de conteúdos e cursos, muitos acabaram se perdendo em um mar de informações fragmentadas que nem sempre estiveram diretamente ligadas aos desafios que enfrentam em seu dia a dia. As plataformas que seguem o modelo Netflix oferecem uma vasta gama de tópicos, geralmente sem a orientação necessária para direcionar o colaborador ao que realmente importa naquele momento específico de sua carreira.

No artigo: "When Designing Employee Learning Programs, Less Is More"na revista Harvard Business Review, de junho de 2023, Heidi Grant and Tal Goldhamer abordam este dilema, indicando que "muitas escolhas rapidamente se tornam aversivas"; que, nesses ambientes, "Leva muito tempo e esforço navegar." e que muitas pessoas "Podem não ter a experiência necessária para fazer boas escolhas".

Colocar a responsabilidade exclusiva da escolha nos alunos que estão buscando maneiras de evoluir é uma tarefa desafiadora, pois muitos deles podem não estar preparados para tomar decisões tão importantes de forma autônoma. "Aprender a aprender" é uma habilidade que exige tempo, esforço e, acima de tudo, muita orientação e feedback contínuo para ser desenvolvida de maneira eficaz.

Perda contínua de atenção e evasão

A Neteflixação da educação acaba promovendo um consumo passivo de conteúdo, o que resulta em um déficit de atenção contínua.Isso ocorre porque, após o consumo repetido de conteúdos puramente audiovisuais, o cérebro começa a se habituar a esse estímulo, diminuindo a capacidade de foco e concentração. Essa abordagem de ensino, que aposta na entrega massiva de informações, acaba não engajando o aluno de maneira ativa, prática e interativa, levando à perda de interesse e à sensação de que o conteúdo não está conectado com os desafios reais do cotidiano.

O gap da proficiência

A "netflixzação" da educação corporativa apresenta outro desafio, que não é exclusivo dela mas que a define, ela pode atender à necessidade de transmissão rápida de informações, mas falha em preencher o gap entre conhecimento teórico e habilidades práticas.

A transmissão de informação teórica não garante que o aluno será capaz de transformar esse conhecimento em habilidades aplicáveis. De fato, como destaca James McKenna em artigo da Harvard Business Review em junho de 2023, "enviar conteúdo pode transmitir novas informações, mas desenvolver habilidades efetivas requer treinamento, reforço e oportunidades para prática segura e autêntica".

Em vez de apenas memorizar teoria, os alunos deviam ser desafiados a aplicar seu conhecimento em cenários realistas, resolvendo problemas e enfrentando desafios, melhorando a sua compreensão e habilidades práticas. Sem essa fase prática e feedback contínuo, a tendência é que os colaboradores se sintam sobrecarregados com a quantidade de conteúdo, sem entender exatamente como aplicá-lo em suas funções diárias.

A culpa é dos alunos?

As empresas muitas vezes têm subestimado a complexidade de implementar um treinamento de qualidade, que deve capacitar os participantes a melhorar suas atividades presentes ou realizar tarefas que antes não conseguiam fazer. O que frequentemente se observa é a simples transmissão de grandes quantidades de informação, onde os conceitos, muitas vezes, se apresentam em um único ponto de contato ao longo da jornada formativa, gerando rápido esquecimento. Esse modelo, embora disseminado, acaba gerando um nível de proficiência muito baixo, pois cria apenas familiaridade com os conceitos, e não o domínio de habilidades concretas.

Essa abordagem, ao focar na quantidade de conteúdo e não na qualidade das interações, falha em desenvolver competências reais. Os participantes se familiarizam com os conceitos, mas não se engajam de forma ativa ou aplicam os aprendizados em contextos práticos, o que seria essencial para um aprendizado efetivo.

Neste cenário, muitos gestores começam a culpar os colaboradores, que são preguiçosos, que a organização deu tudo e eles não aproveitam, que o problema são eles.  Segundo Kendra Grant, Chief Learning Officer do Walmart Canadá (com mais de 90 mil colaboradores), chegou a conclusão de que a falta de engajamento dos colaboradores não era um reflexo de desinteresse ou falta de compromisso dos alunos, mas sim um resultado direto de falhas no processo de design didático. Como ela destacou, culpar os alunos por essa falta de engajamento é uma visão equivocada que muitas empresas ainda adotam.

Num contexto onde o que você sabe é menos relevante do que o que você pode aprender, e saber a resposta para as perguntas é menos crítico do que ter a capacidade de fazer as perguntas certas, a educação tradicional, vestida com novas roupas tecnológicas está sendo mais parte do problema que da solução.

Portanto, a "netflixzação" da educação corporativa, embora inovadora em sua forma de distribuição de conteúdo, não é suficiente para o desenvolvimento eficaz de habilidades. O simples consumo de conteúdo não garante aprendizado profundo ou mudanças de comportamento necessárias para um desempenho eficaz.

As empresas que buscam promover uma verdadeira transformação em seus colaboradores devem adotar abordagens que integrem o aprendizado prático, feedback constante e a personalização do conteúdo às necessidades de cada colaborador.

Dessa forma, poderão garantir que o conhecimento transmitido resulte em habilidades reais e aplicáveis, evitando que a educação corporativa se torne apenas mais uma tendência sem impacto concreto no desenvolvimento profissional.

Daniel Luzzi, fundador e CEO da Cognita Learning Lab e Co-Fundador e Diretor de Aprendizagem da UniCTE. Referência em Educação Digital com mais de 30 anos de atuação em centenas de projetos educacionais nos âmbitos corporativo, acadêmico e governamental. Professor na Fundação Dom Cabral, Doutor em Educação pela FE-USP e Pós-Doutor em Saúde Ambiental pela Universidade de São Paulo (USP).

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