Nos últimos anos, o debate sobre soberania digital tem ganhado força, em especial no âmbito do governo. A recente iniciativa do SERPRO (Serviço Federal de Processamento de Dados) de lançar uma "nuvem soberana" é a evidência disso. Como diretor de tecnologia de uma integradora de TI, tenho levantado essa discussão há tempos, e vejo essa movimentação como essencial, mas também como um ponto de partida – não o fim da jornada. É hora de discutir com maturidade os desafios que essa proposta traz e refletir sobre o caminho necessário para consolidar a soberania tecnológica do Brasil.
O conceito de nuvem soberana utiliza a tecnologia Google Distributed Cloud para hospedar e gerenciar dados exclusivamente em solo brasileiro. Trata-se de uma resposta pragmática às preocupações com privacidade e controle de informações, garantindo conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e a IN05 do GSI, além de minimizar os riscos associados à transferência internacional de dados. Entretanto, é preciso olhar além da localização física dos dados para compreender plenamente os desafios relacionados à soberania tecnológica.
A parceria com o Google Cloud destaca um dilema: embora os dados sejam mantidos em território brasileiro, a dependência de uma tecnologia estrangeira levanta preocupações sobre a verdadeira extensão da soberania tecnológica. Não basta apenas garantir que os dados estejam fisicamente armazenados no país; o controle sobre a tecnologia é igualmente estratégico. Esse é o centro do debate sobre "colonialismo digital" – uma nação pode realmente ser soberana quando sua infraestrutura tecnológica é amplamente baseada em soluções desenvolvidas, mantidas e administradas por terceiros?
Em 2018, o Le Monde publicou uma notícia revelando que o edifício da União Africana, em Addis Abeba, havia sido alvo de espionagem por meio de servidores fornecidos por uma empresa estrangeira. Durante cinco anos, dados sensíveis da organização foram secretamente transferidos para outro país, sem o conhecimento dos líderes africanos. Esse incidente expôs os riscos associados ao colonialismo digital, onde nações ou organizações que dependem de tecnologia estrangeira perdem o controle sobre suas próprias informações.
A dependência de tecnologia externa abriu portas para vulnerabilidades críticas. Esse exemplo ressalta a necessidade de não apenas localizar fisicamente os dados dentro de um país, mas também garantir que a infraestrutura tecnológica seja desenvolvida e controlada localmente, para que a soberania digital seja efetivamente alcançada.
A implementação da nuvem soberana é um avanço significativo, mas precisamos enxergá-la como um marco inicial, não uma solução definitiva. Para conquistar uma soberania tecnológica genuína, o Brasil precisa investir na criação de soluções próprias e fomentar uma indústria de tecnologia nacional que possa competir globalmente.
Nesse contexto, outra iniciativa promissora foi divulgada: o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial. Reconhecendo a importância estratégica no domínio dessa tecnologia, o governo anunciou um investimento de R$ 3 bilhões nos próximos cinco anos, com foco no fortalecimento da infraestrutura tecnológica e no desenvolvimento de IA aplicada a setores como saúde, educação, agricultura e segurança pública.
Dessa forma, tanto a Nuvem Soberana quanto o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial são os primeiros passos em um longo e desafiador caminho que o Brasil precisa percorrer para alcançar plena autonomia tecnológica e consolidar sua competitividade no cenário global. Esses projetos mostram que o país está começando a reconhecer a importância de reduzir sua dependência de tecnologias estrangeiras. No entanto, o sucesso dessas iniciativas dependerá de uma série de fatores, como a capacitação de profissionais, o estímulo à pesquisa e desenvolvimento local e a criação de um ecossistema robusto de inovação.
Rafael Oneda, diretor de Tecnologia da Approach Tech.