"In God we trust, all others we monitor"

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O célebre lema dos EUA, "In God We Trust", surgiu pela primeira vez em moedas cunhadas durante a guerra civil americana.  Segundo documentos históricos sua adoção se deu em razão do crescimento do fervor religioso da população ocorrido ao longo do conflito.  Já sua promoção a lema oficial do país ocorreu em 1956, por meio de resolução aprovada pelo Congresso americano.

Este raro exemplo de profissão de fé feita pelos EUA, Estado laico por força constitucional, foi relativizado no lema informalmente adotado pelas agências de inteligência americanas (dentre as quais a Agência Nacional de Segurança – NSA) que, em paródia ao lema nacional, afirma que "Confiamos em Deus. Todos os outros, nós monitoramos" (no original, o título desse artigo).

É nesse contexto, de clareza de intenções do aparato americano de inteligência, que as reações do governo brasileiro às denúncias de atos de espionagem contra o Brasil nos remetem ao título da comédia de Shakespeare: "Muito Barulho por Nada" (ou quase nada).  Afinal, seja o adiamento da viagem da presidente Dilma aos EUA, seja o discurso de ontem diante da plenária da 68ª Assembleia Geral das Nações Unidas (vide trechos destacados e link para a íntegra, abaixo), constituem, no jargão diplomático, respostas contundentes a atos que não deveriam surpreender, quanto menos chocar, o governo brasileiro.

Por mais que constitua prática indigna, o fato é que a espionagem sempre existiu. A espionagem transnacional nasceu junto com a própria noção de Estado. Desde então, foi regularmente valorizada como instrumento de segurança nacional por virtualmente todos os países do mundo. Não há nação que, em maior ou menor grau, não tenha se valido de atos de espionagem para auxiliá-la a dar norte às suas estratégias e condutas voltadas ao exterior.

Não é por outro motivo, qual seja, o uso difundido da espionagem, que não seja de se surpreender que a ordem jurídica internacional não conte com tratados ou acordos regulando a matéria.  Simplesmente não existem.  Em outras palavras: pelo menos diante do atual direito internacional público positivo, pecado em matéria de espionagem, se algum houver, é deixar-se ser pego no ato.

Se a espionagem é prática consolidada, quase que costumeira na ordem internacional, onde está a novidade que deu impulso aos protestos brasileiros? O que mudou, e na razão direta dos avanços tecnológicos e do crescimento da Internet, foi o incremento da capacidade do aparato de inteligência estatal (e mesmo privado) para obter informações.

Nesse cenário, de pouca novidade, é possível especular que o "barulho" diplomático brasileiro, ou como colocou J.R. Guzzo em recente artigo publicado na revista Exame, que o "som e a fúria" de nossas declarações baseiam-se nas seguintes motivações: primeiro, muito embora previamente conhecida a prática de espionagem, uma vez descoberto o ato, os protestos devem ser públicos e veementes (a teoria de que "não pode ficar barato"); e, segundo, a crença de que no atual nível de desenvolvimento tecnológico, chegou-se ao ponto de inflexão em matéria de regulação internacional referente à espionagem.

Quanto à primeira motivação, a questão passa pela dosagem.  O exagero nas reações pode se voltar contra o Brasil.  Quanto à segundo motivação, a história das relações internacionais nos mostra que as resoluções multilaterais demoram (muitas vezes anos) para ingressar na ordem jurídica internacional e uma vez instituídas, sua aplicação e efetividade não podem ser plenamente garantidas.  Em matéria de espionagem, e em razão de sua própria natureza, o sucesso do esforço normativo nos parece ainda mais improvável.  Ou seja, o "barulho" será por nada, ou quase nada.

É inevitável que sejamos espionados. A equação é simples: quanto maior o acesso de nossos inimigos, ou mesmo parceiros, aos avanços das tecnologias da informação e comunicação, maior o incentivo à prática da espionagem.  E nesse jogo, não há vítimas nem algozes pré-definidos.

A história mais recente apoia o raciocínio. Os próprios EUA têm reportado investidas chinesas (sem indicar se são patrocinadas pelo governo chinês, ou não) contra informações de valor estratégico (e.g. propriedade intelectual) de conglomerados americanos.

A gravidade da situação para os EUA nesse caso, na posição de vítima, é de tal sorte que o Presidente da Comissão de Inteligência do senado americano, Senador Mark Rogers (Partido Republicano), fez, em julho passado, a seguinte declaração à imprensa de seu país: "A China está literalmente tentando roubar nosso modo de vida (…). Uma guerra cibernética está sendo imposta às corporações americanas e o governo não tem capacidade de defendê-las adequadamente.".

Os americanos são reconhecidos, com toda justiça, por seu pragmatismo.  Na posição de vítimas não gritaram a plenos pulmões sua indignação.  Suas providências, além do reforço de investimentos em contraespionagem cibernética, incluem a aprovação de lei que permitirá ao governo americano dividir com empresas privadas informações de inteligência confidenciais necessárias para a defesa contra ataques cibernéticos.

De nosso lado, ao que tudo indica, optamos pela via mais confortável da retórica.  O projeto de lei que trata da Política Nacional de Inteligência está parado no Planalto desde novembro de 2010.  Nos parece que seria mais sábio aprendermos com nossos algozes. 

Se, pelo menos publicamente, é difícil imaginar nossas autoridades afirmarem que: "fora Deus, todos os outros monitoraremos", não seria de todo mal adotar como nosso lema, "fora Deus, todos os outros serão bloqueados".

Gustavo Artese é Master of Laws (LL.M.) pela Universidade de Chicago e advogado responsável pelas práticas de Propriedade Intelectual e Direito Digital do escritório Vella, Pugliese, Buosi e Guidoni Advogados.

Trechos destacados do discurso de Dilma Rousseff na ONU de 24/09/2013:

"Imiscuir-se desta forma na vida de outros países fere o Direito Internacional e afronta os princípios que devem reger as relações entre eles, sobretudo entre nações amigas. Jamais pode uma soberania firmar-se em detrimento de outra soberania. Jamais pode o direito à segurança dos cidadãos de um país ser garantido mediante a violação de direitos humanos fundamentais dos cidadãos de outro país. Pior ainda quando empresas privadas estão sustentando essa espionagem. Não se sustentam argumentos de que a interceptação ilegal de informações e dados destina-se a proteger as nações contra o terrorismo."

"O que temos diante de nós é um sério caso de violação dos direitos humanos e desrespeito à soberania."

"Fizemos saber ao governo norte-americano nosso protesto, exigindo explicações, desculpas e garantias de que tais procedimentos não se repetirão."

"O problema, porém, transcende o relacionamento bilateral de dois países. Afeta a própria comunidade internacional e dela exige resposta. As tecnologias de telecomunicação e informação não podem ser o novo campo de batalha entre os Estados. Este é o momento de criarmos as condições para evitar que o espaço cibernético seja instrumentalizado como arma de guerra, por meio da espionagem, da sabotagem, dos ataques contra sistemas e infraestrutura de outros países."

"A ONU deve desempenhar um papel de liderança no esforço de regular o comportamento dos Estados frente a essas tecnologias e a importância da internet, dessa rede social, para construção da democracia no mundo."

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