A soberania de dados tem se tornado um ponto fundamental no cenário global, especialmente com o avanço célere da inteligência artificial (IA). Em um mundo onde as informações valem ouro, o controle sobre dados estratégicos é necessário para a autonomia e o desenvolvimento de nações, empresas e, principalmente, pessoas.
Diante desse cenário, a integração entre IA e a soberania de dados levanta questionamentos que merecem uma análise profunda. Considerando a capacidade de um país ou organização de controlar, proteger e regulamentar o uso das informações geradas em seu território ou sob sua jurisdição, a soberania de dados no contexto da IA se torna um conceito ainda mais complexo. Isso porque algoritmos de aprendizado de máquina necessitam de grandes volumes de dados para treinar, aprender e evoluir.
A captura, o processamento e a análise desses dados por empresas globais, muitas vezes sediadas em países com regulamentações diferentes, colocam em risco a autonomia dos detentores originais dessas informações. Particularmente, países em desenvolvimento acabam ficando em uma posição mais vulnerável, já que não possuem a infraestrutura ou os recursos necessários para garantir que seus dados não sejam explorados de maneira desleal por potências econômicas e tecnológicas.
Outro aspecto que devemos considerar é que a atual centralização de poder nas mãos de gigantes tecnológicos intensifica a desigualdade no acesso e controle de dados. As empresas do chamado big tech não só possuem a infraestrutura para recolher e processar uma enormidade de informações, como também dominam tecnologias de IA, que necessitam desses dados para funcionar. Tal assimetria cria uma relação de dependência tecnológica, em que países e organizações acabam submetidos a regras e políticas determinadas por corporações estrangeiras.
Para além dos desafios tecnológicos e econômicos, a soberania de dados no contexto da IA evidencia preocupações éticas e de direitos humanos. A exploração descontrolada de informações pode levar a violações de privacidade, discriminação algorítmica e manipulação política. A falta de transparência nos sistemas de IA dificulta a prestação de contas e a fiscalização por parte de governos e instituições independentes. Países que não têm capacidade de regular o uso de dados em seus territórios correm o risco de ver sua soberania enfraquecida.
Por conta disso, diversas nações têm procurado criar estratégias para salvaguardar seus dados. A União Europeia, por exemplo, lidera esse movimento, com iniciativas como o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR), que impõe restrições ao uso e transferência de informações pessoais.
Já a China, por meio da sua Lei de Proteção de Informações Pessoais (PIPL), utiliza uma abordagem mais conservadora e restritiva, controlando rigidamente o fluxo de dados dentro de suas fronteiras, ao mesmo tempo em que incentiva o desenvolvimento de suas próprias plataformas tecnológicas. Essas iniciativas levantam dilemas sobre o equilíbrio entre proteção de dados, inovação e liberdade individual.
A criação de regulamentações locais, como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), no Brasil, que tem uma inspiração na própria GDPR europeia, é um passo importante para assegurar a soberania de dados, mas ainda há um longo caminho a percorrer.
O Governo Federal também apresentou, no fim de julho, o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA). O domínio nacional dessa tecnologia pode ajudar o país a alcançar sua soberania digital. O PBIA estabelece que o Brasil deve desenvolver sua própria tecnologia de IA, desde a estruturação dos bancos massivos de dados utilizados para treinar as máquinas até o desenvolvimento de data centers e de um supercomputador nacional.
Mesmo assim, no caso brasileiro, há desafios na implementação efetiva da lei, especialmente no que diz respeito à fiscalização e à capacitação técnica das empresas e órgãos públicos. Além disso, o debate sobre a criação de um ecossistema nacional de IA, que respeite a soberania de dados sem comprometer o desenvolvimento tecnológico, ainda está em fase inicial. A colaboração entre setores público e privado será crucial para alinhar interesses e garantir que a proteção de dados não se torne um obstáculo à inovação.
Outro aspecto fundamental é a necessidade de fomentar a cooperação internacional baseada na confiança e no respeito à soberania de dados. Modelos de governança global que equilibram interesses comerciais, segurança e direitos individuais são fundamentais para minimizar os riscos associados ao uso da IA. No entanto, a realidade atual revela tensões geopolíticas e disputas por hegemonia tecnológica, o que dificulta a construção de um consenso global sobre o tema.
Em última análise, a soberania de dados no contexto da IA não pode ser vista de forma isolada. Para garantir que a IA seja uma ferramenta de empoderamento e não de dominação, é essencial que os países adotem não só políticas que promovam a soberania de dados, mas também incentivem a inovação responsável e a colaboração global, por meio de recursos como os chamados "espaços de dados", ou data spaces – ambientes digitais interconectados e dinâmicos, que oferecem uma forma segura e confiável de integrar, compartilhar e acessar informações. Só assim será possível construir um futuro digital mais justo, equilibrado e sustentável.
Henrique Cordeiro Florido, Diretor de Inovação e IA & Dados da Minsait no Brasil (Indra).