Como vimos no artigo anterior, o valor para o cliente é o princípio fundamental da filosofia Lean, a partir do qual são derivados e aplicados os demais. Trataremos neste artigo dois outros princípios lean IT: Fluxo de valor e fluxo contínuo. Ambos estão intimamente relacionados entre si e têm foco no fluxo de atividades executadas para a produção e entrega de valor ao cliente.
O fluxo de valor compreende a sequência de atividades executadas para se produzir e entregar o valor para o cliente. Contudo, buscamos não apenas as atividades, mas quais são os desperdícios, os gargalos, as restrições, desvios de capacidade e disponibilidade, retrabalhos, redundâncias, enfim, tudo o que pode prejudicar, desviar e até impedir a geração de valor. Atividades e quaisquer ações e condições que não estejam relacionadas à geração do valor em si, são desperdícios e devem ser eliminados – ou minimizados, caso não possam ser eliminadas. A consequência da eliminação destes desperdícios é a redução do lead time, além do direcionamento dos esforços à real geração do valor do cliente, que é o que importa.
Acredito que neste momento você lembrou pelo menos meia dúzia de atividades que poderiam ser consideradas como desperdícios. Por exemplo, no caso da reposição dos itens que faltam em sua despensa. O que você faz? Identifica quais itens são consumidos pela sua família e os que estão faltando, se desloca até o supermercado, escolhe os itens faltantes, leva-os ao caixa, paga por eles, leva-os até sua casa e disponibiliza-os para consumo da família. Cada um destes passos são as atividades do seu Fluxo de Valor. Vejamos outro caso: você acorda e precisa preparar o café. Você coloca a água para aquecer, prepara o coador e o filtro de papel, se for o caso, coloca a quantidade desejada de pó, despeja a água quente, aguarda toda água passar pelo pó, fecha o recipiente e o disponibiliza para consumo. Este é o seu fluxo de valor para preparar café.
Note que os dois exemplos possuem uma sequência de atividades que é determinante para geração e entrega do valor final. Alterações nesta sequência podem afetar diretamente o resultado final podendo, inclusive, inviabilizá-lo. Se você não verificar a despensa antes de ir ao supermercado, corre o risco de não trazer os itens que sejam de extrema necessidade para seus familiares, além de perder mais tempo – seu tempo – entre as prateleiras do supermercado; se você deixar para aquecer a água do café somente após preparar os utensílios e o pó no filtro, demorará mais tempo para terminar. Os valores esperados pela sua família influenciam diretamente a definição e execução destes fluxos: produtos desta ou daquela marca, desta ou daquela cor, café forte ou fraco, adoçado ou amargo.
Falando em TI, quantos processos de engenharia de software, implantados com todas as recomendações de uma mistura de metodologias de referência, tornam-se complexos, pesados, lentos e engessados, obrigando a geração de diversos artefatos e controles que pouco – ou nada – contribuem para o atendimento da necessidade real do cliente? Quantas funcionalidades que poderiam agilizar um processo de negócio ou até colocar a empresa em um patamar mais competitivo ficam perdidas entre processos burocráticos? Quanto se perde em tortuosos fluxos de aprovações, por diversos níveis funcionais e hierárquicos, impostas para que o trabalho que realmente importa possa ser executado? Quantos trabalhos são transferidos entre diversas equipes técnicas e se acumulam – quando não se perdem – entre uma e outra, gerando excessivas filas de espera? Mudanças simples nas atividades do seu fluxo de valor que já lhe renderiam bons ganhos de tempo de várias equipes, além de agilizar a entrega para o seu cliente.
Visualizar e analisar os itens que são produzidos dentro do fluxo e sua fluidez entre as atividades, o que nos leva ao nosso terceiro princípio lean IT: Fluxo contínuo.
Contudo, apenas esta abordagem não garante a fluidez dos itens de trabalho, que são os resultados das atividades do fluxo e geram o valor final, como por exemplo, peças em uma linha de produção. Estes itens devem fluir entre as atividades da forma mais rápida e sem paradas desnecessárias.
Pensando nos nossos exemplos domésticos citados acima: se você vai ao supermercado sem uma lista de produtos a serem comprados ou, ao menos, sem ter vistoriado sua despensa, você passará maior tempo entre as prateleiras, pensando se deve ou não pegar determinado produto. Além de aumentar o seu lead time, você correrá o risco de comprar produtos que não são necessários (estoque) e de não comprar produtos que são necessários (desperdício de tempo e não atendimento das necessidades dos seus clientes). Você pode optar por um dia e horário de menor demanda no seu supermercado, o que ajudaria a amenizar o gargalo que é o caixa do supermercado e que não está sob seu controle. No caso do café, o momento em que você coloca a água para ferver pode afetar o seu lead time, como já falamos, assim como o uso de medidores de água, açúcar e café, podem garantir uma padronização do seu café, evitando variabilidades que possam lhe tomar mais tempo e gerar insatisfações, sem falar nas atividades paralelas que acabamos iniciando enquanto preparamos o café (tratar o cachorro, pôr a mesa entre outros) que acabam aumentando os tempos e impedindo outras atividades.
Imagine que, em sua área de TI, uma equipe de analistas gere cerca de dez requisitos de software por dia e os passe para outra equipe responsável pela análise desses dados que tem uma vazão de seis pedidos por dia. Desta forma, haverá um estoque de requisitos (gargalo) esperando para passarem pela análise de dados em determinada quantidade (lote). Ambos significam dinheiro parado. O gargalho é a equipe de análise que não tem vazão suficiente à demanda que recebe. O lote de trabalho é o pacote de requisitos que é passado de cada vez, desta forma, demandas que já concluíram determinada etapa ficam esperando os demais terminarem para seguirem para a atividade seguinte. E se cada analista já liberasse cada requisito assim que finalizado? Haveria mais fluidez! É o conceito de One-Piece-Flow aplicado pela Toyota, uma peça fluindo por todo fluxo; não lotes.
No ambiente de TI é muito comum trabalharmos com grandes lotes de solicitações de software, que são submetidos àqueles processos complexos e pesados, dando origem a muitas informações que não necessariamente contribuem para o valor que devem entregar aos seus clientes. Sem falar no tempo que perdem entre as diversas e questionáveis aprovações, vai e vem entre fluxos e equipes. Somente depois de sobreviver a tudo isso é que algo será efetivamente entregue a quem realmente precisa: o cliente. Mas será que, depois de todo este percalço (dinheiro gasto) ainda existe a necessidade inicial do nosso cliente?
Tornar um fluxo contínuo consiste em identificar e eliminar o máximo possível as interrupções e os estoques dentro do fluxo, reduzir o trabalho em progresso (WIP – Work In Progress) e diminuir os tamanhos dos lotes de trabalho, pois são situações que nada agregam ao valor do seu cliente. Num fluxo contínuo, seus itens de trabalho fluem com mais facilidade e agilidade por todas as atividades e você tem uma redução expressiva do seu lead time.
Lembre-se que o seu time, as pessoas que executam estas atividades, são as que mais têm a contribuir. Convide-os para fazer o mapeamento do Fluxo de Valor, para analisar as atividades, na identificação dos desperdícios e, principalmente, nas sugestões de melhorias para eliminá-los.
Não vá sozinho! Vá com seu time, plante a colaboração e o respeito pelo conhecimento dele e colha constância de propósito e consistência dos resultados. Lembre a todos, inclusive a você, em todo momento e questione: qual é o valor para o seu cliente?
*Rafael Castellar das Neves é especialista da Inmetrics.