O Brasil se aproxima da aprovação do Marco Civil da Internet – Projeto de Lei nº 2126/2011, anexado ao projeto anterior PL nº 5403/2001. Muitas discussões se travam a partir desta ideia, mas uma das fundamentais é a da Neutralidade da Rede. Qual sua abrangência? Que consequências práticas ela pode trazer para a definição dos direitos dos usuários? Entender o sentido disso é extremamente relevante para afastar – ou assentar – a noção de que a Internet é uma "terra de ninguém".
Para a perfeita compreensão do tema, é preciso entender que um Marco Civil é uma lei que enuncia direitos e deveres, além de se posicionar dentro e ao lado do sistema jurídico tradicional, servindo tanto como uma declaração de princípios quanto como uma lei tradicional – que, se descumprida, fará com que o infrator receba uma espécie de sanção. Assim, o Marco Civil da Internet no Brasil será uma lei criando direitos e deveres que se imporão imediatamente a todos, independentemente de se ter que recorrer a decretos para complementar seu alcance ou bater às portas do Judiciário para que um direito seja garantido.
Olhando nosso projeto de Marco Civil, o tema mais palpitante em debate é o da Neutralidade da Rede. Este, combinado com o que se propõe de proteção da privacidade, gera uma declaração ampla de liberdade pública negativa, aquela na qual o Estado e as demais pessoas não podem intervir na vida privada do cidadão. Este resguardo com a intimidade e a privacidade dos usuários é consequência, sem dúvida, dos múltiplos casos de violação noticiados, especialmente aqueles envolvendo espionagem e revelação de segredos de estado – os leaks, em história recente.
O Marco Civil da Internet cria dois momentos diferenciados para proteger a privacidade e resguardar a neutralidade da rede: a conexão e o acesso às aplicações da Internet. A cada uma delas, é dado um tratamento diferenciado.
A conexão, definida como o registro do acesso à internet pelo usuário (data, hora e IP de conexão), é protegida de maneira relativa, existindo uma disposição que obriga ao provedor de conexão a manter os registros por um ano, ou mais, dependendo de ordem da autoridade judicial. Estes registros são invioláveis, a princípio, mas podem ser revelados à autoridade judicial em razão de investigação, obedecendo ao devido processo legal. Em termos práticos, por este meio é possível apenas identificar que determinado computador se conectou à internet, em determinado dia e horário.
Mas e quanto ao que foi acessado? Este é o outro núcleo de proteção da privacidade. As aplicações de Internet não estão sujeitas à guarda de informações. Aliás, é proibido guardar estes registros, a menos que seja a própria provedora da aplicação. Ainda assim, estes registros só poderão ser "guardados" após uma ordem judicial específica e valendo para o futuro. E, mais, segundo consta do projeto e de suas emendas, em caso de existência de tal ordem judicial, o usuário suspeito deve ser imediatamente avisado pelo provedor. Esta situação é ilógica e insustentável numa investigação criminal. É difícil acreditar que, ao ser avisada de que a Polícia está monitorando seus acessos, uma pessoa que visite sites com conteúdo de pedofilia o continuará fazendo para aumentar as provas contra si mesmo.
Porém esta não é a única questão a trazer questionamentos. Em sua redação ampla como consta do projeto de Marco Civil, a neutralidade impõe que não se façam distinções aos usuários ou ao trânsito de dados. Com referência aos conteúdos dos pacotes é aberto um amplo espectro de situações que podem induzir aos usuários sentirem que receberam uma carta branca no território virtual da Internet. Isto porque consta que o conteúdo do pacote de dados não poderá ser utilizado para criar embaraços ao seu trânsito.
Ora, uma das funções da tecnologia é permitir um incremento da qualidade de vida. E esta, sem sombra de dúvida, clama por um sentido geral de segurança. Neste aspecto, é extremamente simples se detectar, através da Internet, pacotes de dados cujo conteúdo aponta para uma evidente prática e estímulo de racismo, para o tráfico de entorpecentes, terrorismo, pedofilia e outras mazelas.
Mantendo-se de tal forma a amplitude da neutralidade, a capacidade inerente à tecnologia de se detectar conteúdos desta natureza fica efetivamente debilitada, já que é ilegal qualquer forma de modulação ou discriminação do tráfego, ainda que este seja de um pacote de dados com conteúdo capaz de resuscitar o nazismo ou outras pragas que deviam ter sido erradicadas do comportamento humano.
É óbvio que se poderia objetar: mas seria justo exercer uma censura ou vigilancia dos conteúdos dos pacotes de dados em nome da segurança coletiva? Todo o embate brilhantemente travado pelo CGI – Conselho Gestor da Internet contra os programas que fazem esta "espionagem"?
E aqui renasce o antigo dilema que ainda não conseguimos resolver com uma regra definitiva: como proteger um direito ao extremo, quando para tanto precisamos sacrificar outro igualmente importante direito? Como garantir privacidade extrema, quando, para tanto, corremos o risco de expor ao perigo a paz e a integridade física? A resposta, após séculos de conflitos deste tipo tem sido: os direitos quaisquer que sejam não são absolutos. Eles se equilibram, se completam e se limitam criando um sistema de freios e contrapesos jurídico, histórico e social.
Não há resposta pronta. Ainda mais agora, quando o Brasil se revela vítima da espionagem do Governo Norte-Americano, o debate se torna mais sensível. Mas, ponderemos a seguinte questão: É justo (não questiono a licitude) que havendo ferramentas suficientes para prevenir ou coibir pedofilia virtual, violação de direitos autorais, tráfico de entorpecentes e outros males, não o façamos em prol de uma extremada neutralidade vestuta de clamor, mas oca de conteúdo? Neste debate, como não ecoar Victor Hugo: "Tudo quanto aumenta a Liberdade, aumenta a responsabilidade".
Dr. Jayme Petra de Mello Neto, advogado do escritório Nogueira, Elias, Laskowski e Matias Advogados