CVM e a regulamentação de ativos digitais, um avanço ao não criar barreiras, um problema ao subjetivar a questão

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No dia 11/10/2022, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) emitiu seu primeiro parecer geral de orientação sobre criptoativos e sua relação com os valores mobiliários (o Parecer de Orientação CVM nº 40/2022). 

No documento, a comissão apresenta seu entendimento sobre o tema até o momento e tenta "organizar a casa". Adota um critério funcional para a taxonomia dos tokens (classificando-os em três espécies, payment token, utility token e asset-backed token, neste último enquadrando os security tokens), aborda os conceitos próprios à caracterização de valores mobiliários e reitera o valor da transparência e clareza das informações dispostas aos investidores, permitindo a inferência de que, nos casos de zona cinzenta regulatória, levará em conta a boa-fé dos participantes da oferta. 

Se, por um lado, a visão do regulador ressoa uma compreensão pró businesses e open-minded, a verdade crua é que o conteúdo do parecer é mais um manual contra absurdos do que um guia hábil a sanar as reais e atuais dúvidas daqueles que, de boa fé e imbuídos de espírito empreendedor, vêm inovando no mercado de capitais. É certo, a todos que sabem somar dois com dois, que o fato de se distribuir um valor mobiliário por meio de tokens registrados em rede blockchain em nada muda o fato (de que se está distribuindo um valor mobiliário); logo, se a distribuição for pública, atrairá os ritos e procedimentos próprios a qualquer distribuição pública de valores mobiliários. Em outras palavras, o hype do "novo" não justifica o descumprimento da lei e isso foi categoricamente acentuado pela autarquia, ao pontuar que a tokenização em si lhe é irrelevante, cabendo-lhe somente perquirir se há emissão de valores mobiliários com fins de distribuição pública, quando tanto os emissores quanto a oferta pública de tokens estarão sujeitos ao registro autárquico. 

O grande desafio e fonte de insegurança jurídica remanescente, não resolvido satisfatoriamente, paira sobre a necessidade de submissão ao rito de registro da CVM quando (i) os ativos não forem os elencados nos incisos I a VIII do artigo 2º da Lei de Mercado de Capitais  (Lei n. 6.385/76) nem os Certificados de Recebíveis (da Lei n. 14.430/2022) e (ii) a distribuição for feita na internet sem ativa prospecção de investidores e de forma restrita, em ambiente acessado apenas após identificação e senha. Nesta hipótese, aduz a autarquia que o ativo será sim passível de ser enquadrado como valor mobiliário, dentro do conceito aberto de contrato de investimento, do inciso IX do artigo 2º da Lei de Mercado de Capitais. Aqui, a maior problemática está em se distinguir, de forma clara, quando haverá oferta pública e quando ela será privada. 

O parecer elucida que a definição de contrato de investimento coletivo dar-se-á com a utilização do Howey Test, cujas características analisadas circundam a existência de investimento (aporte em dinheiro ou bem suscetível de avaliação econômica) de formalização (título ou contrato que resulta da relação entre investidor e ofertante, por mais simples que seja), de caráter coletivo do investimento (reunião de recursos de investidores em prol de um interesse comum), de esforço de empreendedor ou de terceiros (benefício econômico resultante da atuação preponderante de terceiro que não o investidor), de expectativa de benefício econômico (direito a alguma forma de participação, parceria ou remuneração, decorrente do sucesso do dito esforço) e de oferta pública (esforço de captação de recursos junto à poupança popular). 

No parecer, o regulador buscou, é de se aplaudir, melhor definir esses três últimos itens referidos. Porém, a alta carga de subjetividade não foi afastada. 

Sobre o esforço de terceiros, em muitos casos é impossível dizer, de forma lógica, que determinada atuação de terceiro na esteira de criação e liquidação do criptoativo foi o preponderante para a remuneração do investimento (por vezes, ou não haveria meio de avaliar a preponderância, ou ela somente poderia ser vista a posteriori ou em relação a alguns investidores – se Elon Musk fosse um investidor, certamente os tweets dele teriam maior preponderância do que qualquer ação do ofertante). 

Mais que isso. Como diz a máxima popular: pau que bate em Chico bate em Francisco. Se, por um lado, não há sentido em um ativo mobiliário deixar de sê-lo apenas por ter sido tokenizado (como dito pela CVM), também não há sentido que um ativo não mobiliário passe a sê-lo apenas porque foi tokenizado! Pensemos na seguinte hipótese, um pai divulga a seus filhos ter criado uma plataforma, na qual ele passa a periodicamente tokenizar livros e distribuir os tokens nela, para que eles leiam e ganhem alguma retribuição, como o acesso a alguns jogos. Por óbvio, tais livros não se tornariam valores mobiliários pelo simples fato da tokenização. Ainda assim, a facilidade de transacionar os tokens logo levaria pessoas a especularem, em busca de benefício econômico. Procurariam tokens de livros raros, fariam algoritmos para operar tokens no intra-day; no fim do dia, isso se assemelharia a uma bolsa de valores, porém, ainda assim, seria uma bolsa de livros. Deveria a CVM intervir na negociação de livros? Entendemos ser óbvio que não. Entretanto, enquanto a regulação for subjetiva, como impedir que interpretações exóticas resultem em "entender" que tais benefícios econômicos só podem ser auferidos com preponderante esforço de terceiros? Qual segurança jurídica tem um voraz leitor que, necessitando de capital, decida vender sua biblioteca pessoal e perceba que é mais fácil o fazer tokenizando e colocando-a a venda na rede mundial de computadores do que numa casa de leilões? 

Já a distinção de oferta pública e privada é um tema ainda mais complexo, visto o modo pelo qual as relações pessoais foram exponenciadas com o advento das redes sociais. No parecer, a CVM diz que a existência de mecanismos de prevenção de acesso à página de internet contendo a oferta (i.e., login e senha), bem como a inexistência de divulgação específica sobre ela, não tem o condão de, isoladamente, afastar o caráter público da oferta e que, para isso, deverão ser levados em conta fatores adicionais, como números de investidores alcançados e subscritores. Entretanto, não há definição, em qualquer local, de que números seriam esses. Como, então, isso será levado em consideração? Voltemos à hipótese do pai que divulga a seus filhos ter criado a plataforma na qual ele tokeniza livros e distribuir seus tokens, para que eles leiam e sejam recompensados com acesso a alguns jogos – não haverá nada mais privado do que tal distribuição. Em pouco tempo, alguns amigos dos filhos se cadastram na plataforma e passam a circular entre si alguns tokens. Mais um tempo, e milhões de pessoas passam a adentrar e especular no ambiente (sem mesmo qualquer intenção inicial do emissor). Em que momento a oferta se tornaria pública, ou teria ela nascido pública por seu potencial? No limite, haveria o "1" usuário a mais que tornaria algo lícito (oferta privada) em uma infração (distribuição pública de valor mobiliário sem autorização)? 

Pior que isso. Se, 40 anos atrás, dificilmente seria possível, salvo ostensiva publicidade, que milhares de pessoas investissem em determinado ativo em um curto período, hoje, um simples meme sobre um investimento pode circular no whatsapp de toda a nação em poucas horas, sendo cada vez mais difícil se defender a métrica do número de pessoas afetadas para distinção de distribuições públicas de privadas. 

Embora seja perfeitamente entendida a dificuldade de os agentes governamentais se comprometam com critérios mais objetivos (e restritivos) que, passado algum tempo, poderiam deixar o regulador de mãos atadas para coibir práticas abusivas não imaginadas, e embora a atual direção da CVM possa ser das mais inteligentes e pro mercado da história da autarquia, fato é que as pessoas passam, a composição dos quadros muda e, no futuro, qualquer subjetividade poderá ser usada em prol de amigos do rei e induzir retrocesso no mercado de capitais. 

A melhor atitude, que permitirá ao mercado de capitais inovar e maximizar a geração de benefícios econômicos à sociedade, é, cada vez mais, diante de inovações, dar-se maior relevância à boa-fé dos agentes, suavizando-se a regulamentação daquilo que possua conteúdo lítico, com clareza informacional, permitindo-se que a livre iniciativa siga seu curso normal e deixando-se o foco punitivo para os crimes, golpes, pirâmides e ofertas que frontalmente violem a legislação. 

Gustavo de Carvalho Blasco, economista formado pela Universidade Mackenzie, gestor de recursos e CEO e fundador do Grupo GCB e das fintechs Adiante e PeerBr. 

Fernando D. C. Blasco, jurista formado pela Universidade de São Paulo e tabelião de Notas do Cartório Blasco – 30º Tabelião de Notas de São Paulo. 

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