Que a pandemia tem sido propulsora na adoção de novas tecnologias não é nenhuma novidade. No mundo corporativo aplicações como videoconferência, documentos digitais, atendimento via chat, compras eletrônicas, entre outros, já fazem parte do cotidiano profissional e permanecerão no mundo pós-pandemia, moldando um novo mercado de trabalho ainda mais permeado pela tecnologia.
Nesta mesma linha a Inteligência Artificial (IA), que já vinha transformando profundamente o mercado de trabalho, tem recebido um enorme impulso. Para além dos robôs com telas acopladas que favorecem atendimento humanizado em hospitais, há uma verdadeira revolução acontecendo nas corporações com a adoção da IA. O que antes estimava-se acontecer em alguns anos, agora é uma questão de meses.
Fugindo das meras especulações em torno de qual será o impacto das novas tecnologias e em particular da IA, para o mercado de trabalho, no mundo pós COVID-19, trouxemos uma adaptação para a realidade brasileira de um inovador estudo desenvolvido pelo pesquisador da Stanford University, Michael Webb e compilado pela ONG norte-americana Brookings Institution.
Para avaliar o impacto da IA em diferentes atividades profissionais o estudo considerou um conjunto de 16.400 registros de patentes que descrevem tecnologias relacionadas à IA, como por exemplo, "rede neural". Em seguida foram identificadas nestas descrições as palavras-chave que indicavam as tarefas específicas que as correspondentes aplicações executam, por exemplo, "diagnóstico de doença".
O uso dos registros de patentes como fonte de dados foi eficiente porque eles apontam para uma real intenção de disponibilizar aplicações de IA (uma vez que o registro é caro e trabalhoso) e as descrições das mesmas são relativamente detalhadas (o que permite extrair um conjunto rico de informações).
Considerando que as descrições nos registros de patentes, em sua grande maioria, referem-se a aplicações de alcance global e também representam um indicador de iniciativas de desenvolvimentos equivalentes em outros países, os resultados possuem aplicabilidade direta para nossa realidade local.
A classificação dos registros de patentes foi então submetida a um algoritmo que ponderou as tarefas executadas pelas aplicações de IA com as descrições de atividades profissionais constantes no banco de dados O*NET do US Department of Labor. Para o mercado brasileiro, fizemos uma correspondência considerando as denominações de atividades profissionais locais.
Como resultado temos um indicador de "exposição" à IA, que sinaliza o potencial impacto a que uma atividade profissional está sujeita. Importante salientar que o impacto pode ser positivo ou negativo. Assim, uma exposição maior tanto pode significar que, por exemplo, uma aplicação de diagnóstico por imagem ajudará um radiologista a executar o seu trabalho de forma mais eficiente, quanto pode indicar que um operador de call center será substituído por um chatbot.
Em linhas gerais o estudo demonstra um impacto da IA no mercado de trabalho semelhante ao provocado pela automação industrial (nas fábricas) e pelos computadores (nos escritórios). Porém, vale recordar que a IA promove uma automação digital através de máquinas que conseguem aprender, racionalizar e agir por si mesmas. Consequentemente, enquanto a automação e os computadores visaram eliminar ou tornar mais eficientes as tarefas rotineiras, repetitivas e altamente processuais, normalmente executadas por profissionais menos qualificados e com menores salários, a IA alcança atividades de natureza analítica e que envolvem a tomada de decisão, comumente associadas a trabalhadores com formação específica e remuneração maior.
A seguir as principais descobertas do estudo.
Praticamente todas as atividades profissionais serão afetadas pela IA. Por ser uma tecnologia de uso geral, com ampla aplicabilidade e resultados relevantes, a IA encontra terreno fértil para sua aplicação na automação de uma infinidade de tarefas. Lembrando que impactar um trabalhador em uma tarefa não significa excluí-lo de uma função.
A potencial disrupção do mercado de trabalho pela IA será significativa, mas restrita. Os profissionais com melhor qualificação e mais bem remunerados serão os mais impactados (positiva ou negativamente). Entre estes figuram gerentes, supervisores e coordenadores (com funções ligadas a monitoramento de tarefas de outras pessoas) e analistas, programadores e assessores (com tarefas notadamente analíticas). Já as carreiras ligadas a serviços estão entre as menos impactadas.
Um exemplo de impacto positivo da IA no mercado de trabalho é na aplicação às funções de back-office de customer experience (CX), que permite a gestão, entendimento e atendimento das necessidades dos clientes de forma muito mais precisa e reação rápida às suas demandas. Neste caso, a IA não substitui os profissionais de CX, mas aprimora os processos e complementa os serviços.
Como exemplo de impacto negativo podemos citar a atividade de cobrança de dívidas, até então executadas por operadores de call center com scripts específicos, e que vem sendo substituídos por aplicações de IA que fazem a análise da dívida, definem as alternativas de pagamento e interagem com os clientes através de chatbots, abrangendo todo o ciclo de negociação para quitação.
Os segmentos mais expostos a IA serão os ligados a negócios, finanças e tecnologia. Empresas menores e profissionais mais especializados, serão os mais desafiados pela IA. Atividades como compras, contabilidade e suporte técnico estarão entre as mais impactadas. No outro extremo, segmentos como saúde e educação parecem estar relativamente imunes a IA.
Profissionais do sexo masculino, em meio de carreira, estarão mais expostos a IA. Isso está em linha com as tendências anteriores, visto que atividades técnico-analíticas são predominantemente desempenhadas por homens e pressupõem algum grau de especialização, o que normalmente ocorre após a formação acadêmica básica e o ingresso no mercado de trabalho. Não significa que as mulheres estejam imunes, mas sim pelo fato de atualmente estarem sub-representadas nestas atividades. Em relação aos jovens em começo de carreira o impacto se dará mais em função de tarefas já automatizadas do que pelo advento da IA isoladamente.
Como vimos, o estudo sugere que as habilidades analíticas e de aprendizagem da IA na execução de tarefas não rotineiras atingem um novo conjunto de atividades profissionais que não havia sido impactado anteriormente pela automação (na indústria e nos escritórios), desempenhado por profissionais mais qualificados e com salários maiores.
A relação da IA com as atividades profissionais, entretanto, é complexa. Em seu livro Prediction Machines, Ajay Agrawal e seus colegas reforçam a tese de que o impacto da IA poderá ser tanto positivo quanto negativo e apontam três potenciais movimentos: substituição, complementaridade e criação.
Na "substituição" a IA elimina o trabalho humano em tarefas específicas, mas aumenta a sua importância em outras atividades que participam da mesma função. É o caso, por exemplo, de profissionais do direito que atuam como paralegais, cujas tarefas podem ser executadas por uma aplicação de IA dando ainda mais ênfase a importância da decisão final tomada pelo advogado.
Em outras situações haverá a "complementaridade" do trabalho humano por uma aplicação de IA. Um exemplo é a pesquisa de novos medicamentos, onde algoritmos são usados para determinar quais moléculas apresentam maior potencial de aplicação, poupando o tempo dos pesquisadores gasto com testes de elementos que não são promissores e consequentemente acelerando a descoberta de remédios.
E finalmente a "criação" de novas atividades resultantes do advento da IA. Talvez o exemplo mais notório seja a necessidade do próprio ser humano para treinar e aperfeiçoar os algoritmos que serão, posteriormente, empregados em maior escala nas atividades antes executadas por pessoas. Um movimento semelhante ao da automação industrial onde os profissionais especialistas em pintura automotiva "ensinam" robôs a executar a tarefa.
Em resumo, podemos esperar que, com o avanço da aplicação da IA nos diversos negócios e setores da economia, veremos um impacto mais significativo nas atividades onde ela leva à substituição de tarefas até então realizadas por seres humanos, particularmente em processos mais operacionais, analíticos ou mesmo com tomadas de decisões mais "simples ou automáticas".
Nas situações em que a IA complementa e/ou agiliza a tomada de decisão por humanos, ela muito provavelmente não trará riscos ao número de empregos, mas sim ao perfil do profissional desejado. Dentre as principais competências e habilidades a serem desenvolvidas/ampliadas destacamos:
Adaptabilidade: conforto com ambiguidade e flexibilidade para responder rapidamente a tendências e mudanças de mercado e tecnologias.
Visão estratégica & insight: curiosidade para aprender o novo, estudar, pesquisar e criar/arquitetar conceitos. Avaliar múltiplas tendências e traduzir em insights e estratégias para o negócio.
Tomada de decisão com base em dados: habilidade para lidar com múltiplas fontes de dados/modelos, analisa-las e tomar decisões.
Promoção de mudanças: capacidade de engajar pessoas em processos de ideação, transformação, resolução de conflitos para promover alinhamento estratégico e ação.
Desta forma, é fundamental que os profissionais de hoje busquem estar preparados para as mudanças que estão acontecendo no que se refere à transformação digital, e comecem a se preparar desde já.
Estudo de Caso: Gestão de Recursos Humanos
A Inteligência Artificial já impacta o mercado de trabalho em múltiplas dimensões.
A IA tem sido cada vez mais utilizada em todos os processos de gestão de capital humano nas organizações, desde a seleção e recrutamento até desenvolvimento e retenção de talentos. De maneira crescente, a tecnologia tem sido aplicada por pesquisadores, start-ups e organizações criando algoritmos e utilizando dados para identificar perfil e personalidade, projetar a adequação a uma determinada posição/função e desempenho.
Em processos de recrutamento, há um aumento do uso de ferramentas de IA para seleção inicial de candidatos, principalmente nos casos de posições até a média gerência. Estas ferramentas baseiam-se em diversos tipos de algoritmos, como por exemplo:
- Processamento de textos: o algoritmo "lê" CVs, cartas, respostas a perguntas ou qualquer texto elaborado pelos candidatos e analisa palavras-chave e compara com características desejadas ou de funcionários atuais;
- Processamento de linguagem natural: o algoritmo interpreta respostas dos candidatos a perguntas específicas sobre experiências passadas, realizações, motivações e analisa vocabulário, sequência de palavras, frequência, etc.;
- Análise comportamental: o algoritmo faz a análise de postura, gestos e movimentos do corpo e dos olhos durante uma entrevista e traduz em traços de personalidade.
Da mesma forma que estas ferramentas são cada vez mais aplicadas ao recrutamento e seleção, o mesmo tem ocorrido nos demais processos de gestão de pessoas nas organizações. Porém, é importante ressaltar que a IA não substitui completamente o ser humano, mas sim complementa o profissional na tomada de decisão. Neste caso, o impacto da IA, muito provavelmente, vai na direção de reduzir o número de profissionais de Recursos Humanos ligados a atividades operacionais, pois diminui o trabalho de processar o grande número de informações sobre candidatos (no caso de recrutamento e seleção), mas eleva o nível de qualificação dos demais profissionais envolvidos na tomada de decisão.
Igor Rocha é engenheiro com MBA e especialização em negócios digitais. Possui uma extensa carreira como executivo de empresas e atualmente é consultor para negócios baseados nas tecnologias de inteligência artificial, blockchain, biometria e identidade digital.
Silvana Machado é engenheira de produção e possui MBA com especialização em Finanças e Economia. Desenvolveu sua carreira como executiva de bancos de varejo como consultora de estratégia para grandes instituições financeiras. Atualmente é Sócia da Egon Zehnder onde concentra-se em Executive Search e Leadership Advisory para clientes do setor de serviços financeiros.