Volta paulatinamente às manchetes a discussão em torno do projeto para o Marco Civil da Internet, o qual regulará direitos e deveres associados à utilização da Internet. Desde o ápice de atenção recebido em novembro de 2012, quando o projeto foi inserido e retirado da pauta de votação da Câmara dos Deputados por seis vezes para, ao final, deliberar-se pela sua suspensão por tempo indeterminado, não houve movimentação que justificasse maior interesse por parte da mídia.
Isto porque, passada a crise do fim do ano passado, durante a qual aprovação e engavetamento da proposta se mostraram desfechos igualmente prováveis, as forças políticas e econômicas envolvidas no processo legislativo voltaram-se, seja às negociações de coxia, seja, tão simplesmente, ao recolhimento estratégico.
O embate político, em seu núcleo, é travado pelos provedores de conteúdo da Internet, a nova indústria de mídia, comércio e serviços criada pelo advento da grande rede, conhecidas como pontocom e pelos prestadores de serviços de telecomunicações, as teles, fornecedores da infraestrutura física que permite o funcionamento da rede. Em outro plano, participam dos esforços de convencimento político os grupos de mídia e produtores culturais.
O retorno do tema aos holofotes tem explicação. Em verdade, a retomada pública das discussões faz parte do jogo. Às teles interessa o arrasto das discussões, uma vez que não se veem satisfeitas com a questão envolvendo a neutralidade de rede (vide abaixo), certamente o tema central da discórdia e chave econômica do projeto. Às pontocom interessa a votação acelerada já que, sob sua perspectiva, o tempo só tem deteriorado projeto que nasceu adequado aos interesses da Internet. A retomada do assunto na mídia, nitidamente com foco na busca pelo apoio popular, faz parte de seus esforços.
A pressão é pela votação do texto como está. A mensagem institucional é a da importância de se regular a Internet e do retrocesso que significaria o arquivamento de projeto já tão amplamente discutido. Tudo indica que se chegará a consenso nesse sentido. Quanto ao ponto mais polêmico, da neutralidade de rede, ao nosso ver, com a redação no formato atual, o artigo 9º constitui declaração de princípios, cabendo à regulamentação, como é de praxe em setores de economia intensivos em investimentos em infraestrutura, o ajuste final do tema.
Abaixo, para entendimento, os pontos objeto das maiores divergências nas últimas votações:
1. Neutralidade da Rede
A neutralidade de rede é princípio pelo qual o tráfego na Internet não pode sofrer, exceto por justificativas técnicas e para a priorização de serviços de emergência, qualquer discriminação ou tratamento não isonômico. Isto é, as teles, na oferta de seus pacotes de banda larga ao cliente não poderiam, e.g., permitir o tráfego de dados de e-mail e bloquear dados de vídeo. A Internet deve, como princípio, ser livre.
O princípio é basilar para as pontocom, indústria que nasceu em ambiente de ausência de regulação e total liberdade. Dar às teles, mesmo que a partir de justificativas econômicas razoáveis, instrumento de controle qualitativo do tráfego de dados (filtros), influencia indiretamente os modelos de negócio das pontocom. Da perspectiva das teles, permitir o uso indiscriminado, sem distinção do perfil do usuário, gera questões de uso ineficiente. Daí o imbróglio.
2. Limites da Responsabilidade do Provedor de Conteúdo
Neste ponto, a questão passa pela falta de previsão legislativa quanto à responsabilização civil (ou isenção de responsabilidade) do provedor de conteúdo pela veiculação de conteúdo ilegal ou ofensivo a direito de terceiros. O projeto vem para preencher a lacuna da lei.
Em recentes decisões, o STJ tem adotado a doutrina americana do notice and takedown para lidar com responsabilização dos provedores de conteúdo, a qual determina a retirada imediata de conteúdo ofensivo ou ilegal do ar a partir do momento da ciência inequívoca (simples notificação) de sua existência, sob pena de responsabilização solidária do provedor com o usuário/cliente que postou o conteúdo.
O projeto não acompanha o entendimento do STJ. Pelo texto atual, o provedor fica isento de responsabilidade pelo conteúdo até que se recuse a cumprir ordem judicial que especificamente determine sua retirada do ar. Na última rodada de votação, por pressão dos grupos de mídia, e por meio da inclusão de parágrafo segundo ao art. 15 de seu texto, adotou-se a doutrina do notice and takedown exclusivamente para direitos de autor e conexos.
3. Registros de Logs do Usuário
Pelo texto atual, apenas as teles estão obrigadas, no caso, por 1 ano, à guarda de logs de conexão (quem entrou na Internet), enquanto que para as pontocom a guarda dos registros a estas relacionados, quais sejam, logs de aplicação (quem fez uso de um aplicativo, e.g. Facebook), é facultativa. Além disso, as teles não têm permissão para recuperar e manter logs de aplicação. A atual configuração de deveres de guarda gera desconforto às teles, uma vez que consideram estar obrigadas a manter registros de menor valor, ao passo que estão alijadas do direito de recolher registros de maior valor, já que os logs de aplicação são fundamentais para, dentre outros, o mercado de publicidade online.
Gustavo Artese é Master of Laws (LL.M.) pela Universidade de Chicago e advogado responsável pelas práticas de Propriedade Intelectual e TICs do escritório VPBG Advogados.